“Que pedagogos éramos quando não tínhamos a preocupação da pedagogia!”, exclama Daniel Pennac em sua obra Como um romance. À parte dos formalismos, das preocupações excessivas com métodos, resultados e acertos, existem valores que crianças, pais e professores compartilham. Estes valores são os pilares da educação e precisam ser resgatados, defende Pennac.
Antes de se tornar um romancista internacionalmente reconhecido, Daniel Pennac foi professor de francês no ensino fundamental e médio de escolas públicas. Antes de se tornar professor, ele havia sido o que os franceses, pejorativamente, chamavam de cancre: um aluno lerdo, com dificuldades de aprendizagem e cujo desempenho beira o sofrível. As memórias desse aluno estigmatizado como incapaz e sua luta como professor de jovens tão estigmatizados quanto ele deram origem ao best-seller Diário de escola, vencedor do Prêmio Renaudot após ter estado mais de 50 semanas nos tops de vendas franceses. Publicado em dezenas de países, a obra vendeu, apenas na França, mais de 1 milhão de exemplares.
O versátil trabalho de Pennac contempla mais de 30 livros em diversos formatos para públicos de todas as idades. De romances a gibis, o mau aluno virou um professor, pedagogo e escritor referencial, viajando a Europa para levar um conceito de educação que motiva todos os alunos, tema da entrevista/relato* abaixo.
MEU TRABALHO
Quando criança, eu fui um mau aluno. Fui um mau estudante, porque tinha medo de não saber responder as perguntas que os adultos me faziam. Todo esse medo da infância se transformou em conhecimento. Meu trabalho, como adulto, é curar as crianças desse medo.
O MEDO
A reação dos adultos é sempre a mesma: eles também têm medo. Têm medo de que seus filhos nunca tenham sucesso. Os professores também têm medo. Têm medo de serem maus professores. Tudo isso tem a ver com a solidão. Solidão da criança, do professor, dos pais. O que é preciso fazer é acabar com essa solidão. Pedagogicamente, como se acaba com a solidão? Criando projetos em comum, onde todos estão envolvidos. Por exemplo, na escola, um projeto em comum é o teatro.
ESTIMULAR O ALUNO SEM PREJUDICAR SUA CONFIANÇA
Eu tinha um professor de francês para quem eu mentia muito, porque nunca fazia os deveres. Ele me disse: “muito bem, vejo que você tem muita imaginação. Então, em vez de utilizar sua imaginação para fabricar mentiras, escreva um romance. Você vai me entregar 10 páginas por semana. Não vou mais te dar redações para fazer ou lições para aprender. Você vai apenas fazer esse romance para mim: 10 páginas por semana.” Isso me salvou. Esse professor foi capaz de transformar um aluno passivo em um aluno ativo, um aluno que escreve um romance.
COMO SÃO OS ALUNOS DE HOJE?
Os jovens, hoje em dia, as crianças pequenas em seus berços, são consideradas pela sociedade de consumo como clientes. Produzem publicidade para empurrá-los a consumir. Consumir tablets, celulares, roupas. Consumir, consumir, consumir. Essa é a cultura cotidiana.
Quando essas crianças vão para a escola, comportam-se na frente do professor como pequenos consumidores. Mas eu, professor, não me dirijo aos desejos delas. Me dirijo às suas necessidades fundamentais. Necessidade de aprender a ler, a contar, a pensar, refletir. A maior parte dessas necessidades se opõe diretamente aos seus desejos. É por isso que é muito mais difícil ser professor hoje em dia do que nos anos 1950, quando as crianças ainda não eram os clientes da sociedade de consumo.
O QUE OS PROFESSORES PODEM FAZER?
O problema é que a criança pequena no seu berço vai acreditar que seu desejo é uma necessidade fundamental. Vai acreditar que sua felicidade depende da satisfação de um desejo que ela considera uma necessidade fundamental.
O trabalho dos adultos é ensinar a dissociar. E a felicidade, a verdadeira felicidade, nós podemos obtê-la quando aprendemos a compreender. É isso que nos faz feliz. Quando eu compreendo as coisas, quando percebo que, de repente, eu sou capaz de compreender. A compreensão é uma boa fonte de felicidade verdadeira.
EDUCAR
Acho que não podemos deixar de lado as nossas próprias responsabilidades sobre uma instituição. É preciso, antes de tudo, que eu, como pai, me sinta responsável pelo meu comportamento diante dos meus filhos. O que forma a educação das crianças? É dar o exemplo.
TRÊS CONSELHOS SOBRE O PRAZER DE APRENDER
1 – O AMOR | Faz falta dizer aos jovens que, ao contrário do que costumamos dizer, o amor faz com que sejamos mais inteligentes.
2 – OS PASSEURS | No fundo, existem três tipos de pessoas: os passeurs, os guardiões do templo, aqueles que acham que sabem e que seu saber é uma propriedade privada e que os outros não são dignos de saber, e a terceira categoria são aqueles que não ligam para nada. O passeur é aquela pessoa que leva em consideração a sua própria cultura sabendo que ela não lhe pertence e que pode fazer a felicidade dos outros. Se eu te levo para assistir a um filme do qual eu gostei e você também gosta, lhe farei feliz. Ser passeur é isso. Meus amigos, é muito simples. Tudo que vocês sabem não pertence a vocês. Não é sua propriedade. O conhecimento não faz mais do que passar através de você. Um dos nossos motivos de estar sobre a Terra é compartilhar isso.
3 – A CURIOSIDADE | Não tenham medo, sejam curiosos. A curiosidade é realmente um remédio contra o medo. Sejam curiosos acima de tudo. “Sim, mas a realidade me dá medo…” Se a realidade lhe amedronta, fotografe-a. Abra-se, abra-se, seja curioso, não se feche.
OS DIREITOS INALIENÁVEIS DO LEITOR
No início de junho, a escritora marroquina Leïla Slimani foi convidada para falar aos alunos de uma escola pública francesa, em Clichy, em um projeto do governo para promover a leitura (foto). Slimani abordou os chamados “direitos inalienáveis do leitor”, propostos por Daniel Pennac (em Como um romance), que também participa deste projeto.
Conheça os 10 direitos abaixo:
1. O direito de não ler
2. O direito de saltar páginas
3. O direito de não acabar um livro
4. O direito de reler
5. O direito de ler não importa o quê
6. O direito de amar os “heróis” dos romances
7. O direito de ler não importa onde
8. O direito de saltar de livro em livro
9. O direito de ler em voz alta
10. O direito de não falar do que se leu.