Alguns momentos históricos marcaram de maneira tão negativa a humanidade, que acabaram por servir, até hoje, como guias do que não se quer para o mundo. Ditaduras, extremismo, autoritarismo e violência certamente estão entre os valores dos quais queremos fugir.
No entanto, a crise democrática, diz Amós Oz, é um problema muito mais complexo do que a mera defesa ou a recusa de determinados valores. Um pilar importante dessa crise, para o escritor israelense, está nos hábitos de consumo.
A chamada indústria cultural – conceito proposto pelos pensadores da Escola de Frankfurt Theodor Adorno e Max Horkheimer na década de 20 – converteria a cultura em produto. Neste processo, defende Oz, perde-se uma dimensão importante de contato das pessoas com a política. Leia abaixo o texto de Maurício Meirelles, para a Folha.
Crise democrática é fruto da indústria cultural, diz escritor Amós Oz
Hitler e Stálin não esperavam, é claro, mas deram um presente à humanidade: o medo do fanatismo e da violência. Por mais de 50 anos, o mundo viveu com tal medo. Agora, a data de validade desse “presente” chegou.
Quem diz é Amós Oz, uma das principais vozes da literatura israelense. Contundente analista político, ele veio ao Brasil participar do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento.
O autor, que em 2017 chegou à final do Man Booker International Prize, um dos principais prêmios literários do mundo, também lançou no país Mais de uma Luz, volume com três ensaios. Em um deles, Oz revê e amplia Como Curar um Fanático, um de seus textos clássicos.
“Há muitas diferenças [desde a publicação do texto original]. Vivemos uma crise muito profunda do sistema democrático. As características que alguém precisa ter para ser eleito são quase o oposto daquelas necessárias para se liderar uma nação”, diz o autor israelense.
O problema, argumenta, é que a política misturou-se às concepções da indústria do entretenimento. Esse seria o motivo da ascensão de candidatos extremistas – eles são os “mais divertidos”, diz Oz.
“Há uma geração inteira de jovens, no mundo todo, que veem mais programas satíricos na TV do que o noticiário. E esse é o único contato direto deles com a política.”
O escritor percebe, no século 21, uma confirmação do pensamento do filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969), que via na indústria cultural uma ameaça à democracia.
“Em certo sentido, ele foi um profeta. Adorno viu crises que só se materializaram agora”, afirma Oz.
O resultado, então, seria o crescimento do fanatismo – forma de pensamento dedicada não só a exterminar o outro fisicamente, mas em matar a diferença entre pessoas.
Para ele, a série de manifestações que começaram com a Primavera Árabe e se espalharam pelo mundo – gerando a crença no surgimento de uma nova democracia, em especial nos países árabes – foi interpretada de forma errada:
“Não houve Primavera Árabe. Foi um inverno islâmico. Muitos achavam que ia se repetir no mundo árabe o que houve nos países do bloco socialista. A história não se repete. Nesses locais, há um tipo de opressão totalmente diferente.”
Mas de onde surge o fanatismo? Para Oz, quanto mais complexos se tornam os dilemas da sociedade, mais haverá quem queira respostas fáceis. O fanático, nesse sentido, é aquele que oferece a redenção em duas frases.
Por isso, afirma, a curiosidade e a imaginação podem ser um antídoto: as duas, afinal, alimentam-se da diferença entre os humanos.
Para ele, a degradação causada pela indústria do entretenimento também afeta a produção artística. As pessoas estariam mais interessadas em formas baratas de diversão do que na “arte séria”.
“É uma infantilização da raça humana. Adultos sofrem lavagem cerebral da indústria cultural para virar criancinhas, porque as criancinhas são melhores consumidores.”
Seria a hora de uma literatura política, então?
“Não escrevo ficção para enviar mensagens ideológicas. Seria um desperdício. Quando quero fazer isso, por exemplo, escrevo um artigo dizendo para o governo [israelense] ir para o diabo que o carregue. Mas eles leem e, por algum motivo que não entendo, não vão.”