Nos primeiros dias de abril, três meses após o primeiro caso confirmado de Covid-19 no Japão, Armando*, paulistano de 41 anos, ouviu pela primeira vez a palavra “corona” na fábrica onde trabalha, na província de Aichi.
“É hora de se cuidar para não atrapalhar a linha de produção”, disse o supervisor japonês da unidade. “O ideal é ir de casa para a fábrica, da fábrica para a casa”, orientou.
Depois, por volta do dia 9, Armando, recebeu um folheto ilustrado com instruções para higienizar as mãos e usar máscaras na usina, que produz peças para megamontadoras japonesas como Toyota, Suzuki e Daihatsu. A fábrica não fornece máscaras aos operários, mas recentemente instalou um ponto de álcool spray na área dos vestiários. Até 17 de abril, o país registrou mais de 9.000 casos e 160 mortes (não há dados divididos por imigrantes e japoneses).
“Antes ninguém tocava no assunto. A fábrica estava a todo vapor, como se não estivesse acontecendo nada lá fora. Só agora o pessoal está acordando para a realidade da pandemia”, diz Armando, um dos milhares de trabalhadores imigrantes de Aichi, que concentra o maior número de residentes brasileiros (52.919, segundo dados do Ministério da Justiça do Japão de 2018).
Além de brasileiros dekasseguis (descendentes de japoneses que migram para trabalhar temporariamente no país), a indústria japonesa emprega contingentes de chineses, coreanos, filipinos e vietnamitas.
Enquanto no Brasil se instaurou uma discussão sobre parar ou não a economia diante das diretrizes de isolamento, no Japão não foi imposto lockdown. Em 25 de março, o presidente Jair Bolsonaro compartilhou no Twitter um vídeo de um brasileiro em um parque de Tóquio, destacando a “normalidade” da vida japonesa apesar do vírus, a fim de criticar a quarentena, que é recomendada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) e por autoridades de diversos países.
Estado de emergência
Em 24 de março, porém, após o adiamento da Olimpíada de Tóquio para 2021, o arquipélago registrou recordes de novos casos por dia, levando políticos, empresários e especialistas japoneses a pressionar por medidas mais rigorosas no combate à Covid-19.
Em 7 de abril, o primeiro-ministro Shinzo Abe declarou estado de emergência, que inicialmente valia para 7 das 47 províncias (Tóquio e Osaka, entre elas) e deveria durar até 6 de maio. Nove dias depois, Abe estendeu o estado de emergência para todo o país, estipulando uma meta de 80% de isolamento nas maiores cidades. Sob estado de emergência, bares, cassinos, cinemas, colégios, museus e parques de diversões podem ser suspensos temporariamente. Fábricas como a de Armando, por sua vez, devem continuar funcionando “até segunda ordem”.
“Home office pra operário? Impossível. Quer quarentena? É por sua conta e risco: para quem é terceirizado e temporário como eu, se não bater ponto, desconta o dia; se reclamar, é demitido. A gente está desprotegido de todos os lados: é medo de pegar vírus, medo de ficar desempregado, medo de precisar voltar para o Brasil com uma mão na frente e outra atrás”, define.
Nas fábricas japonesas, muitos imigrantes são terceirizados e temporários – o contrato, intermediado por empreiteiras e renovado por períodos de 1 a 3 meses, por exemplo, estipula pagamento por hora trabalhada (e não por dia ou por mês).
Teoricamente, trabalhadores japoneses e estrangeiros têm direitos iguais. Se na pandemia a demanda diminuir e a fábrica decidir desacelerar a produção, por exemplo, estrangeiros devem receber remuneração pelos dias parados (a depender do caso, o “kyuugyou teate”, benefício por descanso forçado, ou o “yuukyuu kyuka”, dia de férias remuneradas) e não podem ser sumariamente demitidos.
“Ainda que a administração da empresa esteja indo mal devido à infecção pelo novo coronavírus, não podemos admitir que os trabalhadores estrangeiros sejam tratados com desvantagem ante os japoneses”, diz o informe, traduzido para 16 idiomas e publicado no site do Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar do Japão. No dia 10, o ministério informou que pretende disponibilizar 40 conselheiros nas agências Hello Work, os centros de assistência de empregos, para dar orientações a estrangeiros que se sentirem prejudicados.
“Há muito tempo, o governo japonês tem a preocupação de garantir condições de trabalho igualitárias, não só entre estrangeiros e japoneses, mas entre efetivos e não-efetivos (terceirizados, temporários, meio-período etc.). Em caso de falta para ir ao médico, por exemplo, o empregador deve possibilitar o uso das férias remuneradas pelos terceirizados, que é o mesmo direito dos trabalhadores efetivos. Se o empregador não respeitar essa regra, o trabalhador deve denunciar o fato às autoridades”, diz a advogada Vitória Pinhas, especialista em direito de imigração e transações internacionais, cujo escritório conta com advogados licenciados em países como Brasil, Estados Unidos e Japão.
Direitos trabalhistas em xeque
Na internet se alastram posts de casos de desrespeito de direitos trabalhistas, mas sem identificar empresas e empreiteiras, pois muitos imigrantes temem represálias e não conseguir outros trabalhos.
“Mais uma vez, a novela se repete. Empreiteiras picaretas se aproveitando de um momento de crise para ludibriar trabalhadores estrangeiros”, postou Ricardo Pozzuto, de 42 anos, há 17 no Japão, que administra uma popular página no Facebook voltada para a comunidade brasileira no país.
“Todos os terceirizados de empreiteira estão na corda bamba. Mais de 100, antigos e novos de casa, jovens e velhos, foram demitidos do dia para a noite”, postou Marina*, de Anjo. “Terceirizados receberam aviso prévio hoje [2 de abril]. Isso que a montadora é correta e dá aviso prévio, a maioria não dá. Pensa que está ruim agora? Sabe de nada, inocente”, escreveu Elisa*, de Nagoia.
O governo japonês divulgou iniciativas como auxílio de 300 mil ienes (cerca de R$ 15 mil) para famílias cuja renda foi afetada pela pandemia, sinalizou subsídio financeiro para pais que precisarem faltar ao trabalho para ficar com seus filhos (já que os colégios públicos tiveram aulas e atividades suspensas entre março e abril) e agora discute uma nova proposta de auxílio de 100 mil ienes (cerca de R$ 5 mil) por residente. Entretanto, é limitado o alcance das informações para imigrantes, principalmente devido à barreira do idioma.
Só depois das declarações de estado de emergência, autoridades intensificaram atendimento telefônico multilíngue para dúvidas relativas ao novo coronavírus para estrangeiros que estejam visitando ou vivendo no Japão, inclusive informações para testes. Tóquio, por exemplo, só lançou uma linha direta, disponível em 14 idiomas, em 17 de abril.
Falta de testes
Há tempos o governo japonês vem sendo criticado por não realizar testes numerosos desde o início do surto, na contracorrente da diretriz da OMS (“testem, testem, testem; testem todo caso suspeito”, nas palavras de Tedros Adhanom, diretor da organização). No país, a capacidade de realizar testes saltou de 7,5 mil por dia, até fins de março, para 20 mil por dia, no início de abril. A partir daí, o total ultrapassou 100 mil exames do tipo PCR realizados.
Para Kentaro Iwata, diretor da divisão de doenças infecciosas da Universidade de Kobe, a estratégia de testar apenas focos de infecção foi bem-sucedida enquanto o número de casos positivos ainda era baixo. “A alta de casos em Tóquio e Osaka mudou a situação. Agora, o Japão precisa de mais testes”, diz.
Entretanto, imigrantes com sintomas de covid-19 relatam dificuldades para conseguir realizar o exame. Foi o caso de Ana*, paulistana de 37 anos, há 8 no Japão, que está grávida de 8 meses.
Ana trabalha em uma empresa de tecnologia da informação de Tóquio. No fim de fevereiro, uma colega viajou de férias para o Havaí, voltou à empresa, teve febre por dois dias seguidos, foi afastada e voltou a trabalhar depois de dez dias. Em nenhum momento ela foi examinada, o prédio não foi dedetizado e empresa não fez comunicado oficial aos outros funcionários.
“A partir de 16 de março, eu me senti mal e passei a medir a temperatura: 37,6 graus. No dia 17, 37,9 graus, e um cansaço anormal no corpo. Meu marido é japonês, domino o ‘nihongo’ [a língua japonesa] e decidi ligar na linha direta para pedir informações e tentar marcar o teste”, narra.
Ana foi instruída pela atendente a buscar a hotline do centro de triagem de Yokohama, cerca de 30 km ao sul da capital, mas não conseguiu contato. Decidiu então procurar o consultório de sua obstetra, onde fez o único teste disponível, de influenza (H1N1), que deu negativo.
Orientada a esperar dois dias para acompanhar os sintomas, ela foi para casa e se isolou no quarto, sem contato com o marido. Nos dias seguintes, Ana sentiu fadiga, febre, falta de ar e tosse seca, voltou a ligar para o centro de triagem de Yokohama, que a encaminhou a outro número.
“A todo momento, uma voz dizia que o telefonema estava sendo gravado, mas precisei contar a história inteira diversas vezes. O que mais me chocou foi o tom das perguntas, distorcendo o que eu estava dizendo. Eu descrevia os sintomas e, do outro lado, a atendente dizia ‘mas a febre está constante todos os dias, o tempo todo?, mas a dor no peito não necessariamente é por causa da falta de ar, né?’, tentando direcionar para uma situação que não dá suspeita. Tive de bater o pé: não, não foi isso o que eu disse, a ligação está sendo gravada, pode conferir”.
Ao fim, Ana recebeu outro número para ligar, com a promessa de conseguir marcar o teste “se passasse” pela triagem. Quarenta minutos depois na nova ligação, foi orientada a ficar mais dez dias esperando a evolução dos sintomas em casa.
“No dia 23, a febre abaixou e consegui respirar melhor, mas com um chiado que nunca tive no peito. Ouvir, do outro lado da linha, ‘você não é caso de internação, você ainda está conseguindo conversar’ é desesperador. O pior é ficar sem saber”, relata, com voz ofegante.
No dia 25 de março, Ana precisou voltar ao trabalho, pressionada pelos chefes por não ter atestado ou laudo médico para apresentar, já que não foi sequer testada e “só ficou em casa”. “Os dias que eu faltei vão ser descontados; não tem telework, não tem home office. Eu não deveria sair de casa, pegar trem, ir ao escritório, expor o risco do vírus aos outros, mas fui forçada a trabalhar nos dias 26 e 27. Depois, decidi não me arriscar mais e pressionei para conseguir antecipar a licença maternidade.”
Com os filhos em casa
Eduarda*, paulistana de 32 anos, há 10 meses no Japão, enfrenta outro tipo de dificuldades. Mãe de um menino de 6 anos e uma menina de 7, ela não pode deixar os filhos desacompanhados em casa – os garotos estão matriculados em um colégio particular para filhos de imigrantes, onde as aulas foram suspensas entre 9 e 20 de março e, após a declaração de estado de emergência, a partir de 10 de abril indefinidamente.
“O governo tinha divulgado ajuda para mães, mas não especificava colégios de crianças brasileiras. Tirei metade dos dias de férias remuneradas a que tinha direito em março, para ficar com as crianças, e a partir de agora, em abril, não sei como vou continuar cuidando deles e trabalhando na fábrica ao mesmo tempo. Não vou ter dinheiro mês que vem”, diz Eduarda, de Toyoashi.
“Fui na empreiteira para pedir informações, pois infelizmente a gente, imigrante, fica preso a eles. Mas eles disseram que não sabem simplesmente de nada, que é tudo vago, que é esperar pra ver. Enquanto isso, a gente faz das tripas coração pra pagar as contas”, define.
Toyota, Suzuki & cia
Além do medo de ficar doente (como Armando), não conseguir ser examinado (como Ana) ou precisar escolher entre cuidar dos filhos ou trabalhar (como Eduarda), brasileiros temem o desemprego durante a crise do coronavírus, diante de casos recentemente revelados nas fábricas japonesas.
Em fins de março, uma unidade da Toyota, uma das maiores montadoras do país, registrou dois casos de coronavírus – além dos diagnosticados, dois funcionários na casa dos 20 anos, foram afastados 33 operários que tinham contato constante com eles em um galpão de Takaoka, na cidade de Toyota (Aichi); a unidade foi fechada por três dias (de 23 a 25 de março) para ser desinfetada. Segundo a NHK, a agência pública do Japão, outro funcionário, na faixa de 30-39 anos, foi diagnosticado na unidade de Miyata, na cidade de Miyawaka (Fukuoka). A identidade deles não foi divulgada.
Diversas fábricas da Toyota paralisaram atividades por períodos breves neste mês. Nos últimos dias, outros titãs da indústria automotiva suspenderam a produção no território japonês: subsidiárias e unidades da Suzuki pararam; instalações da Honda, Nissan, Mazda e Mitsubishi, idem.
Honda e Nissan inclusive sinalizaram demissões de 10 mil funcionários cada, nos Estados Unidos e na Europa. No Brasil, de acordo com a consultoria Bright Consulting, focada no setor automotivo, as paradas de produção atingem cerca de 370 mil funcionários de montadoras e fornecedoras de autopeças, um prejuízo de até R$ 42 bilhões em 2020.
“Bem-estar do trabalhador é a última das preocupações. As fábricas japonesas estão parando por falta de peças ou de pedidos”, diz Armando, que ganha 1.300 ienes por hora (cerca 63 reais). Em março, o operário fez jornadas de 11 horas de segunda a sexta e trabalhou quase todos os sábados. Em abril, passou a trabalhar cerca de 6 horas por dia. “Quer dizer, menos horas, menos dinheiro no fim do mês.”
No dia 10, Akio Toyoda, presidente-executivo da Toyota e diretor da Associação Japonesa de Fabricantes de Automóveis, declarou que a indústria automotiva japonesa buscará proteger empregos no mundo todo. Toyoda comparou o atual contexto incerto e a necessidade de ficar em casa como “um longo inverno”. “Agora estamos sentindo mais do que nunca que poder ir aonde você quer é uma experiência emocionante verdadeiramente. Vamos sobreviver, ou então não haverá primavera.”
*Nomes fictícios para preservar identidades dos imigrantes;
**Fontes de informações para brasileiros residentes no Japão:
- Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar
- Centro de Apoio para Residentes Estrangeiros de Tóquio: 0120-296-004 (seg. a sex., 10:00 – 17:00)
- Centro de Informação Médica da Ásia: 03-6233-9266 (atendimento em português às sextas, 10:00 – 15:00)
- Centro de Aconselhamento para Trabalhadores Estrangeiros: 0570-001703 (atendimento em português de seg. a sex., 10:00 – 15:00)