Vivemos uma suspensão de nossas vidas. Em um intervalo de espaço-tempo que jamais a história pode prever para nossa civilização. Estamos no presente. Numa pausa, num silêncio. É nisso que nos apegamos, no hoje, porque o passado está cada vez mais distante… e o futuro? Tá bem longe também… E esse longe é abstrato, podendo ser amanhã ou em meses.
Na semana passada falamos do tempo a partir do Bergson. Nesta semana, entrevistei a pesquisadora Michiko Okano e professora da Universidade Federal de São Paulo para alguns devaneios partindo do “MA” – representado pelo ideograma 間 – um elemento japonês que significa um entre-espaço a partir do qual acontece o processo de comunicação, um quase signo.
Tradicional na cultura japonesa, o “MA” está presente quase que de forma intuitiva nas artes, arquitetura e nas relações interpessoais. Tudo parece fazer sentido dentro dos significados do 間 na dinâmica de suas vidas, como, por exemplo, como se cumprimentam, na distância entre os corpos durante o gesto. A relação estabelecida entre os seres é o que provoca a melhor experiência vivida. E o ser humano se faz dessa relação vivida, como um indivíduo no coletivo.
Nós, do “Ocidente”, que de alguma forma tentamos sempre apreender algo como coisa para poder se apropriar, buscamos infinitamente uma palavra que resuma o MA em toda sua abrangência. Michiko, de origem japonesa e maior estudiosa do 間 no Brasil, em sua tese, busca propor a espacialidade “MA” como signo e processo de mediação característico da cognição e percepção entre os japoneses, de modo a abrir novas possibilidades de comunicação para aprofundar o diálogo entre o Japão e o Ocidente, fora do âmbito exclusivo das imagens estereotipadas, facilmente aceitas pelos paradigmas de mercado em tempos de mundialização.
O “MA” é uma potência, um devir, uma possibilidade que pode se manifestar de várias maneiras. Não é algo linear e se manifesta de 3 formas distintas: 1) vazio; 2) espaço entre, isto é, uma zona de suspensão, uma coexistência na dualidade; 3) espaço e tempo, como uma preparação para se chegar a um novo lugar, quase espiritual. Se nos apegarmos ao “MA” como um tempo necessário como preparação para o que está por vir, então vivemos o estado “MA” nos dias de hoje, na efemeridade e na impermanência da vida.
Na cultura ocidental, o homem é antropoceno, diferente da cultura oriental, panteísta, na qual o homem é parte da natureza e respeita o poder que ela tem. Claro, existe uma rarefação dos pensamentos-base do Japão, mas existem, ainda assim, os vestígios desse respeito e dessa consideração com a natureza, o que talvez seja uma herança do xintoísmo.
Nesses dias habitados do hoje, vivemos processos meditativos, processos de reflexão, de novas formas de conexões e uma possível transformação interna, na produção de um novo signo, vivendo como indivíduo um “MA” potencial, na reminiscência de som que antecede o silêncio.
Existe um vazio disponível que os japoneses permitem com o “MA”, sugerindo os caminhos e não na entrega da fórmula exata. O processo torna-se o mais importante. Vivemos nesse processo, nesse vazio completamente cheio de possibilidades, na extrema potência do vir a ser, deixando nossos poros abertos para a multissensorialidade, em um momento de não ação.
“Quando nada acontece há um grande milagre acontecendo que não estamos vendo.” Guimarães Rosa.
Na arte oriental, ao invés de usar o preto e o branco (não evidenciando a dualidade) preferiam o cinza, para deixar que cada espectador preenchesse a obra com seu repertório. Numa galeria, a parede branca não é um vazio sem potências, é o vazio do que está por vir, na espera do quadro, da escultura, na disponibilidade do vazio, ao culto do imperfeito, que intencionalmente deixa algo inacabado para a imaginação completar. A arte japonesa não quer representar o mundo como a gente vê, mas como ele aparece aos olhos de um artista.
“Ao deixar algo não dito, é concedida ao observador a oportunidade de completar a ideia; deste modo, uma grande obra-prima prende sua atenção até você ter a impressão de ser realmente parte da obra. O vácuo está ali para que você possa entrar e preenchê-lo completamente com sua emoção estética.” Kakuzo Okakura
Pensar na coexistência das coisas, dos espaços, dos seres e como o particular afeta o conjunto é bastante pertinente ao que vivemos hoje, estando em casa como indivíduos para fortalecer o mundo como sociedade, num movimento do microcosmos para o macrocosmos, em pequenas ilhas, pequenos universos.
“Aqueles entre nós que não conhecem o segredo de ajustar adequadamente a própria existência neste tumultuado mar de tolos problemas que chamamos de vida estão em constante estado de miséria, enquanto tentam em vão parecer felizes e contentes.” Kakuko Okakura
Escolhi alguns artistas japoneses de diferentes épocas, que tem o vazio como um elemento forte em suas imagens, para ilustrar a matéria.