No dia 18 de julho de 1908, após 52 dias de viagem, o navio Kasato-Maru atracou no Porto de Santos, trazendo 781 imigrantes japoneses. 165 famílias que traziam na bagagem, muito mais que seus sonhos e aspirações. Traziam consigo todas as habilidades e conhecimentos da terra natal.
Assim, a data que marcou o começo da imigração nipônica, também marca a chegada da arte marcial conhecida como Karatê ao Brasil, quatro anos antes de sua chegada à Tóquio, no Japão.
Venham comigo, pelos caminhos mais escuros da história, entender o que há por trás dessa estranha assertiva histórica.
O berço do karatê é a Província de Okinawa, localizada ao sul do Japão, no arquipélago Ryukyu, formado por outras 169 ilhas, com praias lindas e exóticas, povo hospitaleiro e muito cortês. Anteriormente a região era denominada Reino de Ryukyu, por um bom tempo, parte das colônias chinesas.
No arquipélago de Ryukyu, haviam políticos, funcionários públicos e militares enviados pelo império da china, durante a Dinastia Ming – 1368 – 1644. A presença da China tanto na cultura, vestimenta, arquitetura e culinária em Okinawa é notada até os dias de hoje.
Tudo indica que durante um período em que uma relativa paz era mantida em Okinawa, o To-de – karatê chinês, embrião do karatê moderno – chegou ao arquipélago.
Existem 3 explicações plausíveis acerca de como isso ocorreu.
A primeira, menciona os 36 imigrantes da Província de Fujian que chegaram ao Reino de Ryukyu, em 1392, trazendo consigo os fundamentos de uma arte marcial até então desconhecida.
Por outro lado, as chamadas anotações de Oshima, escritas no final do século 18, dão conta que somente mais tarde, um soldado chinês teria se estabelecido na região, trazendo consigo os segredos da arte do Kumiaijutso –designação local, muito antiga, para o Karatê.
Uma terceira hipótese menciona a invasão do Reino de Ryukyu pelo Clã Shimazu, de Satsuma. Durante seu domínio, as lutas armadas, bem como a posse de armas, foram proibidas, obrigando as classes menos abastadas a desenvolverem uma técnica de luta corporal que não empregasse armas.
De todo modo, a arte marcial foi amplamente difundida em três cidades da Província: Shuri, onde surgiu o estilo Shuri-tê de Soken Matsumura; Naha, o Naha-tê de Kanryo Hygaonna; e Tomari, estilo Tomari-tê de Kosaku Matsumura.
Posteriormente, no século 18, na era Meiji, quando o Reino de Ryukyu foi oficialmente anexado ao Japão e passou a ser conhecido como Okinawa, os estilos Shuri-tê e Tomari-tê uniram-se, formando o Shorin-Ryu e o Naha-Tê se transformou em Goju-Ryu.
Anko Itosu (1831-1915), considerado o Pai do Karatê Moderno, discípulo de Kosaku e Sokon Matsumura, tentou levar o To-de – com a designação de karatê chinês – às demais Províncias do Japão, mas fracassou.
Havia, sim, grande oposição a quaisquer traços de cultura chinesa, situação que se agravou com a Primeira Guerra sino-japonesa ocorrida em 1894.
O karatê até então era fruto de técnicas dos estilos mais fluidos e pragmáticos da China meridional. Mas, após as alterações geopolíticas, sobreveio a predominância das disciplinas de combate do Japão e, nesse período, o modelo tendeu a simplificar ainda mais os movimentos, tornando-os mais diretos e eliminando o que não seria útil ou que fosse apenas floreio. Com a influência das disciplinas guerreiras japonesas – Budô – o nome To-de caiu em desuso e surgiu a designação de Karatê.
Com a predominância japonesa na arte marcial de Okinawa, o Karatê passou a ser visto com outros olhos pelos japoneses. Em princípio, em 1902, o Karatê tornou-se um esporte oficial, deixando de ser visto apenas como meio de autodefesa, sendo incorporado aos programas de educação física de todas as escolas públicas de Okinawa.
Em 1912, passou a ser disciplina obrigatória na Marinha Imperial Japonesa. Em 1922 realizou-se o primeiro evento nacional na cidade de Tóquio. Só então, no decorrer desse torneio, com a ajuda de Jigoro Kano – criador do Judô – o Karatê foi difundido nas demais localidades do Japão e em escala mundial.
Assim, meus bons, poder-se-ia considerar que o Karatê chegou ao Brasil antes mesmo de ser difundido no Japão e no resto do mundo.
Calma! Eu explico.
Tecnicamente, o Karatê moderno nasceu no Japão. Isso não se discute, pois, desde o século 18, o arquipélago de Ryukyu havia sido anexado pelo Japão.
Entretanto, quando o Kasato-Maru atracou no Porto de Santos, 40% de seus 781 passageiros eram da Província de Okinawa, lugar onde, desde 1902, o Karatê era ministrado como parte da grade de educação física nas escolas primárias.
É certo, portanto, afirmar que cerca de 325 dos japoneses que chegaram ao Brasil, em 1908, possuíam os fundamentos da tão celebrada arte marcial oriental.
Sabemos que com a expansão das plantações de café, havia demanda por mão de obra barata na zona rural paulista no final do século 19 e no início do século 20. As famílias que chegaram no Kasato-Maru vinham para trabalhar nos cafezais do oeste paulista.
O Brasil passou a ter, então, a maior colônia de japoneses do mundo. Primeiramente instalados nas cidades de Biguá, Pedro de Toledo, Bastos, Maria e Garça, além do litoral e da capital paulista.
Nas colônias, os japoneses ensinaram a Arte da Mão Vazia, nos termos prescritos de Okinawa, aos jovens japoneses e aos poucos brasileiros que se interessavam. A prática do Karate-Dô, até então, era desenvolvida informalmente no Brasil.
No Japão, contudo, desde o torneio inaugural de 1922, já existiam academias e campeonatos de Karatê eram promovidos em todo o território.
Em maio de 1949, no Japão, discípulos de Funakoshi fundaram a Japan Karate Association – JKA, com o intuito de promover o Karatê no mundo todo. Logo, se criaria a World Karate Federation – WKF.
Somente em 1956, o professor Mitsuke Harada organizou a primeira academia na rua Quintino Bocaiúva, no centro da capital Paulista. Seguindo o exemplo de Harada, outros Mestres de Karatê, alguns dos quais haviam desembarcado em 1908, fundaram suas academias: Juichi Sagara, em São Paulo; Yasutaka Tanaka, Sadamu Uriu, no Rio de Janeiro, Higashino em Brasília e Eisuku Oishi na Bahia.
O Karatê ganhou diversos adeptos e foi amplamente difundido no território brasileiro a partir da fundação da Associação Brasileira de Karatê no ano de 1960, em São Paulo, pelo Professor Seiichi (Shikan) Akamine, introdutor do Goju Ryu no País.
Dentre os estilos de Karatê difundidos atualmente no Brasil, estão o Shotokan – trazido por Mitsusuki Harada, em 1955; o Goju Ryu – estilo trazido por Shikan Akamine, em 1958; Wadoryu, ensinado por Koji Takamatsu a partir de 1956; Shorin Ryu – por Yoshihide Shinzato, desde 1954; e Kenyuryu, ministrado por Akyo Yokoyama, a partir de 1965.
É sem dúvida alguma a arte marcial mais conhecida do mundo. Mas aqui temos a contradição; o Karatê, desde o seu nascimento em Okinawa, praticamente engatinhou em termos de reconhecimento, não apenas no restante do Japão que, conforme mencionado, viria a acolhê-lo apenas em 1912, mas, igualmente, no mundo.
Somente em 1999, o Comitê Olímpico Internacional reconheceu a World Karate Federation como órgão máximo do Karatê mundial, permitindo que a Arte da Mão Vazia, mais de um século após seu aprimoramento, figurasse como esporte de demonstração durante os Jogos Olímpicos de Atenas em 2004.
Nos dias de hoje, o Karatê é praticado por pessoas de todas as idades em todas as regiões do Brasil. De todos é possível ouvir comentários e histórias sobre a influência positiva que o Karatê teve e tem em suas vidas. Não faltam casos de crianças muito tímidas excessivamente agressivas que encontraram na Arte da Mão Vazia uma referência para a busca do equilíbrio.
São igualmente frequentes os exemplos de pessoas que começaram a praticar o Karatê já na maturidade e nele encontraram uma fonte para a manutenção ou recuperação de algumas características de sua juventude.