Há tanto apego em conservar uma postura de desprendimento, que me assusta. Ou está todo mundo vagando solto e sozinho sem rumo por aí ou diz uma coisa e faz outra.
Está na moda. É preciso desapegar. É preciso deixar fluir e fazer o universo entender que tudo precisa ser renovado. Ande, abra as janelas e jogue tudo pelos ares. Jogue fora aquela tralha toda acumulada que deixa o seu armário uma confusão. Jogue também aqueles papéis que não servem para nada. Jogue fora potes velhos e coisas estragadas, caixas das coisas que compra e fica com pena de descer até a lixeira.
Aproveite e jogue fora também tudo o que não usou ou lembrou que existe nos últimos dois anos.
É a regra. Em quase tudo que procura na internet tem essa regra. Não sei quem inventou. Mas viralizou.
Jogue fora a comida velha da geladeira e o que estiver com prazo de validade vencido também. Não fique com nada que estiver partido, lascado ou com algum defeito não original.
Atenção! Corra! Aqui há tendência a jogar fora os relacionamentos partidos, lascados ou que adquiriram aqueles defeitinhos insuportáveis. Não toleramos nada que nos tire do estado midfullness!
Desapegue de gente chata e, se for preciso, desapegue de si também. Vamos todos desapegar da própria liberdade de ser livre. O que importa é sair “desapegando”.
Não se apegue a relacionamentos duradouros porque anda na moda dizer que é apego se apegar e construir castelos. Afinal, hão de ruir. Mais cedo ou mais tarde. Não vale a pena tentar. Precisamos desapegar para doer menos.
Não se apegue a amores de verdade. Alguém espalhou por aí que não existem.
Não se apegue àquele olhar único que só se encontra uma vez ou duas na vida.
Não se apegue em tentar ser feliz ou realizar os seus planos até o fim. Não se apegue em resultados porque esses o tempo engole. O importante é a caminhada. Mas se a caminhada for longa demais e lhe ocupar demais a cabeça, desapegue disso também.
É tanto desapego, que estamos em crise. O desapego caiu na boca do povo, e acontece que temos o efeito contrário disso em nossas vidas. Hoje o que mais vejo é o apego ao desapego.
Há tanto apego em conservar uma postura de desprendimento, que me assusta. Ou está todo mundo vagando solto e sozinho sem rumo por aí ou diz uma coisa e faz outra.
Não é possível viver nesse estado de desapego de si mesmo e dos outros o tempo todo.
Alguma coisa anda mal. Tem gente deixando ir embora um grande amor. Tem gente perdendo o tempo certo para fazer acontecer os seus sonhos e planos. Tem gente desistindo de si mesmo numa tentativa frustrada de desapego feito sem jeito, sem muito pensar e sem saber ao certo ao que desapegar e ao que se apegar para ser feliz.
Acontece que agora, quando chegamos em casa, não são só as tralhas que nos desapegamos que sumiram! Foram-se também aqueles relacionamentos nos quais não apostamos,com medo de ser feliz. Aquela oportunidade de trabalho que merecia a nossa disposição em apegar-nos, em nossa coragem de enfrentar desafios e um futuro que se mostra, à medida que mostramos o nosso empenho e a nossa força.
O apego às pessoas, às coisas e ao passado é a grande batalha diária das nossas vidas. E é assim porque é fácil fazer isso, na medida em que registramos as nossas experiências, a partir do impacto emocional que nos provoca. É a marca que damos, que para alguns é mais forte, e para outros, menos. Quanto menos o emocional estiver envolvido, mais fácil deixar ir e desapegar.
Sabemos que não é fácil. O apego exagerado atrasa a vida e nos prende. Não perdoa. Não segue em frente. À medida em que aprendemos a nos desprender das coisas materiais, fica mais fácil desvincularmos o emocional das nossas relações com as pessoas que não estão contribuindo para a nossa felicidade.
É verdade também que, ao passo que conseguimos deixar que as pessoas saiam da nossa vida, aprendemos a virar as costas e ir embora para situações em que possamos ter uma oportunidade real de uma existência mais significativa, chegamos ao nível mais complicado.
Sim, a forma como processamos o nosso passado é, sim, o último nível do desapego emocional, que começou lá atrás quando resolvemos jogar fora algumas coisas.
Quando voltamos os nossos olhos para trabalhar o nosso passado, vemos o quanto ainda pessoas e coisas estão presas a nós, mas já deveriam ter ido. Mas não permitimos. Nós nos agarramos a este último grito de desespero em manter as coisas, as pessoas e as emoções que nos fazem mal, porque encarar o dia seguinte, como um novo dia, assusta. Mas é preciso.
Entretanto, não me leve a mal, mas não exagere. Não se desapegue tanto que acabe por desapegar-se de si mesmo.
Nem tudo devemos jogar fora. Nem todo passado é ruim. Eu diria que tudo o que foi, foi bom. Foi bom para aprender. Foi bom para viver e recordar. E algumas coisas que aconteceram foram boas pra não querer viver outra vez. Só que o registro emocional tem de ficar como experiência vivida. O que não pode é nos impedir de seguir em frente.
O importante é saber fechar a porta àquele romance meia-boca que se vive. Desligar o telefone e não viver pela metade uma boa história. Não perder oportunidades. Nem viagens, nem experiências. Nem pessoas, nem a si próprio.