Yuichi Ishii é um japonês muito mais alto do que a média. Magro, de aparência tranquila e rosto cansado. Não é para menos. Ele está prestes a completar 38 anos, mas tem mais filhos que qualquer outra pessoa da sua idade.
A diferença é que eles são seus filhos apenas quatro horas por dia, algumas vezes por semana, dependendo da necessidade de cada cliente.
Há dez anos, ele fundou a empresa Family Romance, especializada no aluguel de amigos e familiares.
A companhia conta com uma equipe de 2,2 mil funcionários prontos para serem pais, mães, primos, tios, avós ou namorados. E, embora muitos japoneses não estejam cientes da existência deste negócio, a popularidade do carismático empreendedor está crescendo a cada dia.
O diretor de cinema alemão Werner Herzog se interessou pela história e foi para Tóquio rodar o filme Family Romance, LLC, que estreou no Festival de Cannes deste ano, e conta com Yuichi Ishii como protagonista.
Nos próximos meses, Ishii vai lançar o livro Human Rental Shop (“Loja de aluguel de humanos”, em tradução livre), em que relata as inúmeras experiências que permitiram a ele fazer parte de centenas de famílias, mas sem pertencer a nenhuma delas de fato.
Ele conta à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, sobre a mistura inevitável de sentimentos e a contribuição que assegura dar para a sociedade japonesa.
O que é a Family Romance?
Em poucas palavras, é uma empresa que presta serviço para quem está com problemas e precisa suprir certas carências. Sou falso, mas por algumas horas eu realmente serei seu amigo ou seu parente.
Há muita gente que contrata esse serviço com propósitos muito diferentes. Alugamos todos os tipos de parentes, para todos os tipos de situações.
Por exemplo, se alguém precisa de pais postiços para apresentar à noiva ou ao noivo, porque por algum motivo não pode apresentá-los aos pais verdadeiros, recorre a este serviço.
Neste momento, procuramos pessoas que sejam parecidas com os familiares “originais” para desempenhar o papel – mesma altura, corte de cabelo, idade, etc.
Quem tem dificuldade de fazer amigos, pode alugar um. Nós agimos como verdadeiros amigos, gostamos de sair para fazer compras, bater perna, conversar, etc.
Pode ser também um acompanhante para ir a um casamento. O que for. Há idosos que alugam filhas, filhos, netos para recriar o que já viveram ou nunca chegaram a ter.
Os clientes podem usar nossos personagens para ficar a sós com eles ou apresentá-los a outras pessoas.
Nossa missão é nos tornar oficialmente a pessoa que estamos representando.
A estrutura familiar da nossa empresa tem todos os personagens, incluindo avô, avó, bebês, tios, primos, etc.
A origem da ideia
Há 14 anos, aos 24 anos, eu tinha uma amiga que era mãe solteira. Ela queria matricular o filho em um jardim de infância privado, mas eles solicitaram uma entrevista com o pai e a mãe da criança.
Não funcionou como esperávamos porque a criança e eu não conseguimos agir realmente como uma família, mas percebi que havia algo interessante nessa carência familiar.
Existem muitas famílias monoparentais no Japão, e há cerca de 200 mil divorciados por ano.
Na sociedade japonesa, assim como em muitas outras, uma família monoparental tem desvantagens. Então pensei que se criasse um serviço para alugar famílias, poderia ser usado como um complemento às relações. Esse foi o gatilho.
Decidi chamar a empresa de Family Romance, inspirado no ensaio homônimo de Sigmund Freud.
O texto fala sobre a fantasia da família ideal que as crianças têm e, quando estávamos começando, achei que essa premissa era muito semelhante ao serviço que queríamos oferecer.
Pai de família, o papel mais alugado
O aluguel de pais é o mais popular. O pai é importante para a criança. É a pessoa que deveria ser um dos seus modelos para a vida.
Muitas famílias tentam compensar a falta da figura paterna alugando uma. O que eu tenho que fazer é perguntar as razões, entender por que elas querem alugar e, na sequência, refletir sobre a questão específica de cada uma para criar o personagem.
Por exemplo, se a pessoa é divorciada e a criança é pequena, você tem que criar uma história de por que você não foi visitá-la até agora. Algo como “me desculpe, depois do divórcio me casei e não conseguir voltar até hoje…”, e assim fazer adaptações de acordo com cada história familiar.
Não há uma receita que funcione para todos.
Pode ser um pai amável, um pai forte, um pai elegante, podemos entregar o que os clientes pedirem. Para um pai severo, por exemplo, o dialeto kansai (que soa mais duro que o japonês padrão) é bom. E assim por diante.
De acordo com os pedidos dos clientes, procuramos nos quadros da empresa o personagem que melhor se adeque ao perfil. É um papel importante, que não pode ser substituído. Portanto, costumamos reunir funcionários com perfis semelhantes e fazemos uma apresentação para o próprio cliente escolher.
Fazemos nosso melhor porque é uma grande responsabilidade. É muito difícil.
Neste momento, sou pai de 25 famílias.
A Family Romance tem algumas regras. Uma é que só pode haver cinco famílias por funcionário – ou, por ator, digamos. No entanto, como comecei há muito mais tempo e sou o mais experiente, de uma hora para a outra me vi como o pai de 25 famílias.
Há 35 crianças que me consideram seu pai verdadeiro. Mas no total existem cerca de 69 relacionamentos falsos que mantenho, entre amigos, netos, namoradas etc.
Tenho que checar as informações de cada família todos os dias antes de ir até a casa delas. Tenho um caderno em que anoto todos os nomes e detalhes que preciso.
Às vezes, chego a uma casa e lembro os nomes, mas esqueço os apelidos – nessas horas, o que eu faço é ir ao banheiro, pegar meu caderninho e verificar. Quando há muitos membros em uma família, é fácil cometer um erro.
No papel de pai, muitas vezes tenho que ir a uma reunião na escola pela manhã. À tarde, para um evento esportivo; depois, para um jantar. É muito trabalho.
Ao repetir essa rotina várias vezes, comecei a precisar de um tempo só para mim. A querer ficar sozinho.
Não tenho férias, mas decidi que meu tempo pessoal é entre meia-noite e 3h00 da manhã, não importa o quão cansado eu esteja. Vejo filmes, desenho… Essas são as minhas férias. Durmo cerca de três horas por dia.
Há momentos da minha vida privada em que estou rindo e sinto que a risada é a mesma do personagem que encarnei no dia anterior. Isso me dá um pouco de medo. Quem sou eu realmente? Talvez haja algo que eu precise fazer.
Sou solteiro e meus pais ainda estão vivos. Às vezes, quando encontro minha família e comemos juntos, consigo ficar voltado para mim mesmo por um momento.
Casamento, realidade e ficção
Há duas razões pelas quais não quero me casar no momento:
A primeira é que tenho 25 famílias falsas, mas são famílias. Por isso, se me casasse, pensaria no rosto de cada um deles. O que eles vão sentir se eu realmente me casar com alguém? Eu questionaria isso para sempre.
A segunda razão é que, mesmo que eu me casasse e tivesse filhos de verdade, tenho medo de pensar que poderia vê-los como mais uma família de aluguel. No final, tudo se misturaria.
O negócio acima dos sentimentos
Quando você está no meio do dia, convivendo com a família, com as crianças, meu comportamento é de amor profundo por eles. De coração.
No entanto, a virar a chave dos sentimentos é muito importante. Preciso parar no momento certo.
Quando chega a hora, você precisa inventar alguma desculpa para se despedir. “Tenho que ir trabalhar” ou “eu tenho que ir para casa”, no contexto de pais separados.
Não é fácil convencer as crianças: “Por que você está indo para casa?”, questionam. É muito triste ver uma criança chorando. Esse é o momento mais difícil.
Nosso papel é agir como uma família ideal, mas não posso fingir o sentimento de amor.
Alguns clientes acreditam que meus sentimentos reais são aqueles que prevalecem. Mas preciso ter coragem de dizer a verdade. Ao mesmo tempo, deixo claro que isso é um negócio e custa dinheiro. São 20 mil ienes por quatro horas (cerca de R$ 740), além de transporte e refeições. Não é barato para uma mãe solteira.
Se são duas, três ou mais vezes, acaba saindo caro. Algumas pessoas estão endividadas. Há também aquelas que te seguem quando você vai embora. Isso é realmente um problema.
Quando eu comecei, não tinha experiência e havia momentos em que não sabia como separar meus sentimentos, mas agora isso não acontece.
Quando estou trabalhando, faço meu melhor. No entanto, quando chega a hora, saio do personagem, sem prejudicar a atuação.
Sem sexo
Não é permitido beijar ou fazer sexo. Tudo o que você pode fazer é dar as mãos. Oferecemos cerca de 30 tipos de serviços, mas todos têm regras, que são revisadas diariamente para que o cliente sinta que o personagem que está contratando atenda totalmente sua demanda.
Claro que somos seres humanos e nossos sentimentos podem mudar. Uma vez, quis beijar uma esposa, mas me segurei. Tenho autocontrole suficiente porque há vários regulamentos, e eles são claros desde o começo. Embora o cliente insista.
Quando a verdade é revelada
Devemos contar a verdade quando as crianças se tornam adultos?
Acho que sim. Uma das minhas filhas, que conheci quando estava na quarta série, tem agora 20 anos e ainda acredita do fundo do coração que sou pai dela. Ela acha isso há 10 anos.
É difícil porque em algum momento os clientes devem dizer a verdade para os filhos, mas não posso decidir isso. Quero oferecer felicidade em troca do meu trabalho, é por isso que criei essa empresa, mas se a verdade ficar escondida por muito tempo, de alguma forma serei afetado.
Com o tempo, a história vai aumentando de proporção e é muito difícil contê-la.
Solidão na sociedade japonesa
Os japoneses têm uma boa noção de hospitalidade, é uma cultura que respeita e valoriza o próximo. O problema é que estamos muito preocupados com a aceitação moral ou com o que os outros dizem. É difícil para nós sermos como queremos ser ou nos expressar da maneira que queremos.
Desta maneira, sinto que o serviço da nossa empresa é uma necessidade.
A antiga família japonesa era numerosa. Agora, a taxa de natalidade está em declínio. Mudou, inclusive, a forma de comunicação – o número de conversas também está diminuindo.
Sem dúvida, seria melhor que nossa sociedade não precisasse desse tipo de serviço. Mas, por enquanto, não é assim.
Vivemos um tempo em que é necessário complementar as relações atuais com aluguel.
Claro que minhas raízes estão na minha família real, ninguém nasce sozinho.
No entanto, acredito que os laços de sangue não são tudo. Podemos de fato desempenhar o papel de um pai de família, sem uma relação sanguínea. Nosso slogan é “Alegria acima do real”.
Satisfação
Quando você aluga alguém, é porque de alguma forma você não pode obter esse relacionamento por conta própria.
É claro que temos que enfrentar muitas críticas, de que é uma farsa, que não dizemos a verdade, etc. No entanto, independentemente do que digam, sempre que houver alguém que precise de mim, continuarei fazendo isso.
Quando as necessidades dos clientes podem ser atendidas, fico satisfeito do fundo do meu coração. Acho bom que a gente exista e acredito que foi positivo ter criado esta empresa.