Como as obras de Naoko Takeuchi influenciaram as crianças dos anos 90
A representação feminina ao longo da história sempre foi muito limitada e tomada de preconceitos e estereótipos, colocando a mulher sempre em posição de vulnerabilidade e recheado de sex appeal (apelo sexual), como se elas não pudessem ser mais que uma figura que necessita de um homem para ser completa.
Foi nesse espaço, em meio ao boom dos animes (animações japonesas) exibidos na televisão brasileira, com Cavaleiros do Zodíaco, Pokémon e Dragon Ball Z, nos quais os guerreiros e heróis eram majoritariamente homens, em que surgiu Sailor Moon (Pretty Soldier Sailor Moon no título original japonês), inicialmente lançado como mangá (os quadrinhos japoneses) e escritos por Naoko Takeuchi, na época com seus 25 anos.
Sailor Moon, na época, foi o título que deu nova força e popularização ao gênero Mahou Soujo ou Magical Girl (garota mágica, em tradução livre), que é um termo utilizado para categorizar obras de anime e mangá onde há personagens femininas jovens com poderes mágicos. O primeiro anime desse gênero foi um chamado Mahoutsukai Sally (Sally the Witch, ou Sally, a Bruxinha em tradução livre), que não chegou a ser lançado no Brasil e nem nos Estados Unidos.
A proposta da história de Sailor Moon é bem simples: Usagi (ou Serena, na versão brasileira) é uma garota de 14 anos que leva uma vida comum. Acorda atrasada, tem problemas na escola e se fascina com seus interesses amorosos. Um dia, ela encontra uma gatinha sendo maltratada por um grupo de garotos e a salva. Logo, ela se revela Luna, uma gata falante que diz que Usagi está destinada a ser Sailor Moon, a guerreira do amor e da justiça responsável por proteger a Terra de forças do mal com outras garotas que possuem o mesmo destino e diferentes poderes mágicos.
Apesar de sua aparência monotemática e clichê original, com problemas com namorados de Usagi e com a aparência de todas as personagens — o que reflete muito da cultura e da sociedade japonesa, sempre muito preocupada com as mulheres solteiras e com a busca da beleza perfeita — o significado de Sailor Moon é muito mais profundo e cativa as pessoas pela personalidade forte das protagonistas — fator tão pontual que o mangá e o anime são mais conhecidos pelas suas personagens que pelo enredo em si.
Em 2015, a Vice lançou uma série de mini documentários chamada American Obsessions e, no ano seguinte, apresentou um episódio voltado exclusivamente para os mangás e anime de Sailor Moon e como estes influenciaram positivamente a infância de milhares de norte-americanos nos anos 90, enquanto passavam por questões de identidade, gênero e aceitação.
A REPRESENTATIVIDADE EM SAILOR MOON
A representatividade é fator muito importante e aparece bastante em Sailor Moon. A começar pela proposta principal: mulheres fortes. Apenas o fato de ver uma garota ser denominada guerreira já faz com que isso se torne extremamente relevante para o amadurecimento das meninas e, saber disso, as deixa mais confiantes em relação ao seu futuro.
A mensagem passada é simples, direta e poderosa: garotas também podem ser guerreiras, e também podem salvar o mundo. Garotas altas, baixas, morenas, loiras, ruivas ou de cabelo colorido; garotas femininas, fofas, ou tomboy; garotas que gostam de garotas, ou apenas de si mesmas; garotas cis, ou trans; garotas que sonham em ser médicas, popstar ou serem casadas. Para a época em que foi lançado, já continha um discurso recheado de diversidade e progressismo.
Além disso, relações homossexuais foram bastantes vistas, e representadas de maneira delicada e verdadeira, sem fugir da realidade e diversidade que encontramos na vida real. Sailor Urano e Sailor Netuno eram namoradas; Kunzite e Zoisite, vilões da primeira parte do anime, também tinham um relacionamento. Neste último, Takeuchi corria o risco de cair no clássico perfil dos “gays malvados” da época, mas isso não ocorreu porque ela representa o amor, o que acaba humanizando os personagens. Infelizmente, algumas versões nos Estados Unidos, assim como no Brasil, se empenharam para esconder a orientação sexual desses personagens, mascarando um romance ao adaptá-lo para uma relação familiar e ao colocar uma mulher para dublar um personagem masculino.
Ainda fugindo do padrão heteronormativo, ainda aparecem personagens em outras temporadas que podem ser colocados em diferentes classificações da comunidade LGBT. Correndo o risco de se tornar um estereótipo mal concebido, do mesmo modo que Kunzite e Zoisite, Fish Eye (ou Olho de Peixe, em português), um outro vilão da história, também é gay e não tem vergonha de ser quem é, vestindo-se da maneira que lhe agrada. Desenhado como homem, esse personagem pode entrar na categoria de crossdresser (alguém que gosta de usar ocasionalmente roupas características do gênero oposto, geralmente em ocasiões específicas), já que é possível vê-lo se vestindo com roupas femininas e usando maquiagem, mas em nenhum momento isso é utilizado como alívio cômico.
Além dele, há as Sailor Starlights: um trio de sailors formado por guerreiras — no universo de Sailor Moon, apenas mulheres podem ser sailors — que se transformam em homens quando chegam à Terra. Quando Seiya, Taiki e Yaten usam seus poderes para se transformar, é visível a mudança de seus corpos adquirindo características femininas, tornando o processo uma espécie de símbolo para as pessoas transsexuais, embora as personagens não sejam, de fato, transsexuais. O pararelo criado com essa comunidade é muito importante para quem se identifica.
SAILOR MOON E O FEMINISMO
A nível de comparação, tanto as gerações anteriores de meninas à época de Sailor Moon na TV aberta quanto as seguintes cresceram com a ideia de que apenas garotos poderiam ser heróis e que meninas seriam apenas coadjuvantes que, ocasionalmente, seriam salvas pelos meninos. Naoko Takeuchi, ao colocar uma menina chorona e medrosa como a guerreira mais poderosa de todas e apresentar um grupo constituído apenas por super-heroínas, mostrou a força das mulheres — sozinhas, mas além de tudo, juntas.
A partir disso, a forma como as meninas enxergavam a si mesmas e o mundo ao seu redor mudou e Sailor Moon as ajudou a entender e a respeitar as diferenças. Takeuchi foi responsável por formar o caráter de muitas pessoas e influenciá-las com pensamentos feministas e (quase totalmente) livre de preconceitos.
Contando a história de um grupo de garotas que, juntas, combatem qualquer tipo de mal, injustiças e opressão, mostra que uma aliança entre as mulheres é possível e pode ser muito fortes, tornando-as verdadeiras amigas, cúmplices e unidas por uma causa —isso soa familiar? Esse é um forte exemplo de sororidade (termo que remete ao apoio recíproco entre as mulheres, proporcionando confiança, reconhecimento mútuo de autoridade e apoio, surgido, em seus primórdios nos anos 70, com o termo sisterhood, ou irmandade, em português).
PRECONCEITOS NO ANIME
Entretanto, assim como nem tudo são flores, Sailor Moon não é inteiramente perfeito. Produzido nos anos 90, era de se esperar que ainda permanecessem alguns aspectos nocivos da sociedade que não eram tão discutidos. Há diversas passagens gordofóbicas na série e a representatividade racial ainda carecia muito de atenção. Existem muito poucos vestígios de personagens negros, por exemplo, e por mais que a trama se passe no Japão, onde há pouca miscigenação, ainda se trata de um universo ficcional e, teoricamente, com licença poética para uma diversidade ainda maior na criação de personagens. Dentre as Sailor guerreiras, Sailor Pluto é a única que possui um tom de pele mais escuro nos mangás. No anime, clarearam sua pele.
Apesar disso, o fato de que Sailor Moon falava de representatividade há mais de 20 anos, quando o machismo e a homofobia eram ainda piores que hoje; nos ensinava a lutar pelos nossos objetivos e que, mesmo assim, ainda estava tudo bem ser vulnerável de vez em quando, já possui muito valor.
Reconhecida por abraçar e celebrar as diferenças, Naoko Takeuchi faz um grande favor a todas as gerações que consumiram sua obra, mostrando a elas que a amizade e a força feminina importam; que amor é amor; e que ser você mesmo é motivo de orgulho.
Um feminismo escancarado e potente que expõe e explica diversos conceitos com pureza e simplicidade a um público infantojuvenil em seu mais alto potencial de compreensão e absorção desse tipo de conteúdo, ajudando-as a perpetuar uma mentalidade mais aberta às diferenças e à união feminina como forma de protesto.