Luis Mauro Sá Martino, doutor em ciências sociais pela PUC-SP, conversa sobre a relação da caverna de Platão e a era da Self nos tempos modernos.
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“Um dos trechos mais famosos da história da filosofia é a chamada Caverna de Platão, resumindo de uma maneira muito, muito resumida, imagine o seguinte: numa caverna três pessoas estão acorrentadas olhando só para o fundo da caverna. Elas não conseguem virar para a entrada da caverna de onde está chegando a luz e, portanto, tudo que elas vêem são as sombras que estão projetadas no fundo dessa caverna. De repente, uma dessas pessoas consegue se soltar, vai lá para fora e é ofuscada pela luz, consegue ver a realidade que estava acontecendo, volta e, ao tentar contar para as outras duas pessoas, ela acaba sendo agredida e as pessoas não acreditam nela.
Essa alegoria da caverna, como é conhecida, é usada para inúmeras interpretações. E a gente pode pensar um pouco a partir dela, como é que a gente vive num mundo cheio de redes, informações, selfs, auto-retratos e fake news que a gente vive. Sem fazer uma comparação muito apocalíptica, a gente pode começar alguns questionamentos a partir daí. O primeiro ponto é lembrar que nós seres humanos sempre editamos as nossas informações.
Toda manhã, antes de sair de casa, a gente já sabe se está indo trabalhar ou encontrar uma amiga e a gente se dá aquela editada, escolhe que roupa vai por. Por exemplo, se você vai gravar um vídeo ou se você vai para uma reunião, você sabe mais ou menos qual é a roupa que você vai usar. Isso é uma maneira de você editar a realidade e portanto passar uma ideia, uma projeção, assim como as imagens da vida real projetadas do lado de fora da caverna chegavam na forma de imagens.
O importante, no entanto, é a gente ter alguma dúvida ou algum critério para observar em que medida nós estamos chamando de verdadeiro algo que é apenas uma parte da realidade. Talvez uma boa parte dos conflitos contemporâneos nas redes sociais, seja o fato de que nós tomamos aquela pessoa que a gente só conhece um pedacinho, lá na rede social, pelo todo da pessoa. Nós tomamos a parte pelo todo e achamos que, por um comentário, eu já conheço tudo sobre aquela pessoa, eu já sei o que ela pensa, o que ela sente, como ela vive, às vezes por uma foto, uma Self que ela posta eu já começo a me sentir no direito de achar que eu conheço tudo e julgá-la, e falar: “Nossa, esse fulano é assim, esse fulano é assado.” Com isso, de alguma maneira, nós estamos olhando para as sombras.
É possível olhar para a realidade? não sei, talvez a gente seja ofuscado por ela, mas lembrar que nós estamos trabalhando sempre com pedaços, com edições, seja interessante para a gente, antes de formular a nossa opinião fechada e completa, perguntar: O que é que eu sei mesmo dessa pessoa com quem eu estou conversando, o que eu sei mesmo dessa pessoa a respeito da quem eu tenho como grande informação uma postagem, duas postagens, uma Self? Talvez pra isso, a alegoria da caverna nos lembre o seguinte, se libertar daquilo que nos faz olhar para essas sombras, é sempre um processo difícil, mas é bastante gratificante quando a gente percebe que, por trás desse tipo de ilusão, existe a oportunidade de conhecer um pouquinho mais a realidade. E conhecer a realidade do outro, talvez seja um grande passo para perceber que esse outro tem algo legal a me mostrar. E, também, ou outro grande passo para ver se essa pessoa realmente não encaixa comigo, eu posso ter mais propriedade para falar “olha, não quero”, mas tomando cuidado de não apropriar o todo pela parte, coisa que a gente faz com muita facilidade — eu faço também, não estou me tirando do jogo — mas que a longo prazo pode cria conflitos bastante sérios porque, o desconhecimento do outro, costuma me levar a ter medo do outro.
Os prisioneiros que ficaram na caverna parecem, também, ter tido algum medo do que o outro viu, do que o que se libertou viu, justamente porque o desconhecimento costuma levar ao medo e o medo costuma ter como efeito colateral direto a agressão