No dia 17 de setembro passado, a professora Eliza Atsuko Tashiro Perez, do Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e o professor Jun Shirai, da Shinshu University, do Japão – atualmente professor visitante daquele programa -, descobriram um exemplar do Vocabvlario da Lingoa de Iapam, guardado no Acervo de Obras Raras da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro.
Publicado em 1603 em Nagasaki, no Japão, pelos missionários da Companhia de Jesus, com uma prensa de tipos móveis metálicos importada da Europa, a obra é um dicionário bilíngue japonês-português. O exemplar descoberto no Brasil é o quarto de que se tem notícia e o primeiro do continente americano. Os outros três estão na Bodleian Library, da Universidade de Oxford, na Inglaterra, na Biblioteca Pública de Évora, em Portugal, e na Bibliothèque Nationale de France, em Paris (este último disponibilizado desde 2013 na plataforma Gallica Online). O exemplar achado no Brasil pertenceu à mulher do imperador D. Pedro II, Thereza Christina, e foi doado por ele depois da morte da imperatriz, em 1889, com a condição de que não tirassem o nome dela, escrito numa etiqueta.
A descoberta se deu graças a uma parceria entre a USP e a Shinshu University. Com parte da sua vinda financiada pela Japan Foundation, o professor Jun Shirai foi convidado a dar aulas e cursos no Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa da FFLCH. Já a professora Eliza investiga a produção dos jesuítas sobre o Japão e a língua japonesa. Com interesses em comum, eles foram fazer pesquisas na Biblioteca Nacional. Ali, tiveram acesso a um programa de busca da instituição e conseguiram localizar o dicionário “meio por acaso”, como conta a professora, já que a ortografia estava incorreta – Iapam estava escrito com “n”. Eliza lembra que, ao longo do tempo, a escrita vai se modificando e se atualizando, o que dificulta a busca por obras mais antigas.
Segundo o professor Jun Shirai, o dicionário é uma publicação importante, que registra mais de 32 mil palavras em japonês da época, que vai da segunda metade do século 16 até o início do século 17. A professora completa dizendo que é um registro da língua escrita e oral daquele período, ressaltando sua importância para o estudo da linguística, da literatura e da história. “Os dicionários japoneses não tinham tantas palavras como esse, porque, para os japoneses da época, não havia necessidade de incluir termos cotidianos, como anel, cabelo e óculos, por exemplo”, relata.
Resultado de uma cuidadosa observação da língua japonesa feita pelos jesuítas, o dicionário pretendia servir de ajuda aos missionários para o estudo do idioma. Credita-se sua edição ao sacerdote português João Rodrigues, mas isso não é comprovado, como afirma o professor Shirai, que acredita, assim como a professora Eliza, tratar-se de uma produção conjunta entre os jesuítas e os japoneses que tinham aprendido o português e o latim.
Há ainda outros dois dicionários impressos pela Companhia de Jesus no Japão: Dictionarivm Latino Lusitanicym ac laponicym (1593), de latim, português e japonês, e o Racuyoxu (1598), de ideogramas. Segundo a professora, essas publicações também podem ser descobertas no Brasil. “Essa possibilidade não é nula, já que em muitas bibliotecas há livros ainda em fase de catalogação e divulgação para o público.”
Estrutura do vocabulário
No Vocabvlario da Lingoa de Iapam, as palavras estão ordenadas alfabeticamente, sendo que as palavras e expressões japonesas possuem equivalentes e explicações em português. Quando necessário, os autores identificam palavras que pertenciam a dialetos regionais, formas faladas ou escritas, a linguagem das mulheres e crianças, palavras formais e correntes e o vocabulário budista, este último muito importante na cultura japonesa. O dicionário contém informações sobre rimas, pronúncias individuais, significados, usos linguísticos, nomes das plantas e animais, frases populares e costumes da época.
Os verbetes estão relacionados a duas regiões principais do Japão, como explica a professora Eliza: o centro do país, com a sua capital Kyoto, na época, e o sul, por onde entraram os jesuítas, na região de Kyushu. “O dicionário registra a língua da elite da época, porque Kyoto era onde ficava a corte imperial e onde moravam os aristocratas, ao mesmo tempo em que traz a forma coloquial usada pelo povo japonês do sul do país.”
Outra particularidade, como diz Eliza, é sua escrita, feita em alfabeto – ou seja, eles não usaram as fonossílabas (escrita criada no Japão) nem os ideogramas (traços importados da China). A fonte da letra é romana, completa o professor, que estuda principalmente a tipografia da língua japonesa. A professora Leiko Matsubara Morales, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa, destaca que, como está escrito em alfabeto, o dicionário reproduz a língua oral fidedignamente, fato de grande importância para o estudo da fonética japonesa.
O dicionário faz parte de um conjunto de cerca de 40 livros sacros, linguísticos e literários que foram publicados no Japão pelos jesuítas desde a chegada da Companhia de Jesus no país, em 1549. Muitos desses volumes foram destruídos pelo governo militar japonês durante a perseguição contra a religião católica, que começou já na segunda metade do século 16, e posterior expulsão dos missionários cristãos do arquipélago japonês. Os poucos volumes que ainda restam estão preservados em bibliotecas e museus de diversos países.
Como afirma a professora Eliza, os japoneses não tomaram conhecimento da impressão dessas obras, já que esse material era produzido para os próprios jesuítas. “O governo dos samurais fechou o Japão entre 1639 e 1853, e só em 1868, quando houve a abertura de fato do país para a entrada de imigrantes, um diplomata inglês levou para lá um catálogo com a produção que havia sido encontrada na Europa”, informa. “Foi a partir daí que surgiu o interesse em estudar essas obras, com o intuito de conhecer uma língua de 300 anos atrás”, continua a professora, acrescentando que se formou no Japão uma área chamada Estudos dos Documentos Cristãos.
“O dicionário encontrado na Biblioteca Nacional traz uma capa dourada, que não é a original, e parte lombar da obra se perdeu. Provavelmente já houve uma restauração”, relata a professora. Em uma análise preliminar, essa edição é semelhante àquela existente na Bibliothèque Nationale de France por não conter o Svpplemento (caso das edições guardadas na Inglaterra e em Portugal, nas quais o volume de 1603 ganhou mais palavras na encadernação de 1604).
Com volume de palavras sem igual no Japão, o Vocabvlário da Lingoa de Iapam é até hoje uma referência para se conhecer a língua, a cultura e a história do país do final do século 16 e início do século 17. Segundo Eliza, atualmente as pessoas estão pesquisando de forma mais cooperativa, com a união de dados de grupos internacionais, aumentando assim as possibilidades de novas descobertas.