Como o Brasil se tornou o segundo maior produtor de soja do mundo? A história desse cultivo, que com seus prós e contras é hoje um dos principais motores econômicos do País, se cruza com a da imigração de japoneses, poloneses e alemães.
Para estes imigrantes, a terra brasileira foi literalmente, no início do século 20, fonte de novas riquezas – que transformaram de forma definitiva os rumos do país. Originária da Ásia, a soja começou a ser plantada experimentalmente em pontos diversos do território brasileiro.
Em São Paulo, por exemplo, imigrantes nipônicos cultivavam o grão em pequena escala, para consumo familiar de alimentos derivados deste elemento fundamental na culinária japonesa. No Rio Grande do Sul, alemães e poloneses fizeram experimentos com a planta vislumbrando o potencial econômico da soja – que só se engataria, no entanto, algumas décadas depois.
O encontro da planta com a trajetória dos poloneses em particular é parte de uma pesquisa em curso do historiador Rhuan Trindade, doutorando na UFPR (Universidade Federal do Paraná).
Inspirada neste estudo, a BBC News Brasil buscou pesquisadores que se debruçaram também na conexão da soja com as imigrações japonesa e alemã. Confira abaixo.
Um intelectual para uma nova pátria
No mestrado, Trindade estudou especificamente a trajetória do agrônomo polonês Ceslau Biezanko (1895-1986).
O intelectual foi enviado ao Brasil pelo governo polonês na década de 1930 e, anos depois, em 1963, foi reconhecido pelo governo brasileiro como o introdutor de sementes de soja no Rio Grande do Sul – mais precisamente na cidade de Guarani das Missões, hoje com cerca de 7.600 moradores e conhecida por ter sido um destino importante para imigrantes poloneses no Sul.
Neste meio tempo, Biezanko trabalhou em parceria com párocos, escolas, associações e agrícolas de origem polonesa, buscando melhorar a vida dos colonos. Nesse projeto, a soja era vista como “importante fonte de novas receitas e prosperidade futura” pelo intelectual, conforme registra um de seus artigos, escrito em 1958.
“Ele partia de um pressuposto iluminista de associar a melhoria da sociedade à educação e à técnica”, explicou Trindade à BBC News Brasil por telefone. “Biezanko tem o perfil do intelectual do século 19 que acaba versando sobre várias áreas: ele caminhava por sete ciências distintas; escreveu artigos que vão da botânica à química e à economia. Além dessa amplitude de formação, o ideal iluminista coloca o intelectual também como aquele que intervém na realidade da sociedade por meio de ações políticas e sociais”.
A vinda do agrônomo ao Brasil, como para muitos de seus conterrâneos, tem conexão direta com a história polonesa naquele período. A partir do final do século 18, o país deixou de existir e teve seu território dominado em diferentes momentos pela Rússia, a extinta Prússia e a Áustria. Foi um intervalo marcado por conflitos e pobreza, o que estimulou ondas migratórias.
O Brasil, por sua vez, estimulava a colonização por estrangeiros europeus como forma de incentivar a produção de alimentos para o mercado interno. A partir dos anos 1870, famílias de camponeses poloneses passaram a ocupar os Estados da região Sul, algo intensificado em 1890 no período denominado a “goraczka brazijliska”, ou a “febre brasileira”.
Enquanto isso, com o domínio russo, muitas pessoas originadas no território da atual Polônia foram enviadas para lutar na Guerra Russo-Japonesa (1904-1905). O conflito disputava áreas chinesas, o que, provavelmente, pôs europeus em contato com a soja – posteriormente levada à Europa.
Segundo Trindade, com a independência da Polônia em 1918, o país recuperado passa a tentar fortalecer seus emigrados com, por exemplo, o envio de intelectuais.
Potencial não cumprido
Em sua missão, Ceslau Biezanko apostou principalmente na introdução, em Guarani das Missões, do bicho-da-seda, que também é um produto chinês.
Mas há relatos de que o agrônomo introduziu ali também outras 12 variedades de soja.
“Uma entrevistada, já idosa na época de nossa conversa, contou que sua irmã recebeu na escola um punhado de sementes de soja para levar para casa. Era uma distribuição de pequeno alcance, essa produção nunca passou dos quintais. Era algo mais ensaístico”, conta Rhuan Trindade.
“Inicialmente, essa introdução da soja foi precária, não havia linhas de comunicação para o comércio e nem compradores. Então, ela foi usada para ração, principalmente suína. Só que a soja em excesso na ração causava uma descalcificação óssea nos suínos”.
É possível que essa experiência malsucedida tenha contribuído, em 1934, com a saída de Biezanko de Guarani das Missões. Outro motivo pode ter sido a escalada de conflitos internos na comunidade polonesa. Nos anos seguintes, o agrônomo se dedicou à vida acadêmica em Pelotas (RS), local de seu falecimento.
Nas décadas seguintes, o alcance da soja permanece restrito, ainda que surjam, por exemplo, empresas familiares que começam a trabalhar com o processamento de grãos – transformando-os, por exemplo, em farelos e óleos. Tudo muda entre as décadas de 60 e 70 – mas antes de chegar lá, é preciso voltar no tempo para conhecer como os japoneses tratavam a soja no Brasil.
Um alimento fundamental
A partir de 1908, o Brasil recebeu tamanha população de imigrantes japoneses que tem hoje estimados 1,5 milhão de cidadãos com essa ascendência, segundo o Consulado Geral do Japão em São Paulo. Em grande parte, eles vieram com vistas ao trabalho em lavouras de café no Estado de São Paulo.
Mas, se do café tiravam meios de sobrevivência, as primeiras levas de famílias nipônicas já plantavam a soja em casa para consumo próprio – afinal, o grão é componente fundamental da culinária japonesa, para alimentos como shoyu, tofu e missô. Só que, do ponto de vista econômico, em São Paulo, o café tinha mais demanda de mercado e um solo e clima mais propícios do que a soja.
Agrônomo formado na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP, Isidoro Yamanaka, filho de japoneses, conta porém que essa produção caseira só daria o salto para o agronegócio na década de 70. E Yamanaka, hoje com 83 anos, foi testemunha ocular dessa trajetória – ele mediou diversos acordos entre governos e cooperativas de agricultores do Brasil e Japão e, nas décadas de 70 e 80, coordenou programas no Ministério da Agricultura e Fazenda.
Era 1973 e o então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, tinha imposto temporariamente um embargo à exportação de grãos dos Estados Unidos, inclusive para o Japão. O objetivo era garantir o abastecimento interno dos EUA e controlar a inflação de preços.
“O japonês depende da soja. Foi um desespero. Em 75, enviaram imediatamente 29 missões, com mais de dez pessoas cada, do Japão para Brasília para a cooperação na produção de soja. Aí, começou o Prodecer (Programa de Desenvolvimento da Agricultura do Cerrado)”, diz Yamanaka, que acompanhou algumas dessas missões como assessor do gabinete da Secretaria de Agricultura de São Paulo.
Depois de percorrer o Brasil de Norte a Sul, as missões decidiram pelo Cerrado como região prioritária para o plantio da soja e outros alimentos.
Paracatu, em Minas Gerais, foi cenário para o projeto piloto do Prodecer – que, além de mobilizar produtores de origem japonesa, também acabou por atrair agricultores do Rio Grande do Sul.
O boom da soja
O Cerrado é um dos palcos principais, até hoje, do plantio da soja. Mas, na década de 60, outros fatores contribuíram para que o Sul despontasse neste setor.
Além da demanda externa, contribuíram também para o avanço desse cultivo no país programas de melhoramento genético e a mecanização na agricultura.
Como resultado, na média anual, a produção só fez crescer: saiu de 206 mil toneladas em 1960 para 1,5 milhão de toneladas em 1970. Na safra de 2017/2018, o Brasil produziu 117 milhões de toneladas de soja.
“É no Noroeste gaúcho que se inicia o grande boom da soja: isso é inegável. A região se torna uma grande monocultura de soja em propriedades pequenas, que produzem para o mercado externo. É a famosa ‘revolução verde’, com consumo de insumos, mecanização da lavoura e correção da calcário no solo”, aponta Rhuan Trindade. “O boom da soja nos anos 60 e 70 está diretamente ligado à imigração europeia”.
Esse momento de ouro para a soja coloca, no entanto, duas origens europeias em disputa pela “paternidade” da imersão do grão no Brasil – parte fundamental da pesquisa do historiador. Ao lado dos poloneses de Guarani das Missões, se colocam os alemães de Santa Rosa, também no Rio Grande do Sul.
Com um roteiro parecido ao das primeiras experiências com a soja em Guarani, em Santa Rosa, foi o pastor luterano e americano Alberto Lehenbauer quem introduziu o grão no pequeno vilarejo.
“O pastor viajou na década de 20 para os Estados Unidos e a soja estava fazendo o maior sucesso por lá”, explica a historiadora Teresa Neumann Christensen, que há anos estuda o cultivo de soja, sobretudo na região de Santa Rosa. “A situação era tão triste, de uma pobreza de marré, com crianças subnutridas. O pastor avaliou que a soja poderia resolver essa questão, então publicava em periódicos receitas com o grão, ajudava na organização do plantio”.
“Ele pedia que, quem colhesse soja, que levasse uma porção nos cultos de domingo. É importante não só como a soja chegou a Santa Rosa, mas a socialização que ela promoveu. A região tinha um luteranismo muito forte, então a figura deste pastor teve uma importância imensa. Ele promoveu a solidariedade e a prevenção à desnutrição”.
Segundo a historiadora, Lehenbauer era americano mas filho de alemães. Depois de sua missão em Santa Rosa, ele foi transferido para a Argentina.
Enquanto isso, em Santa Rosa, o crescimento da soja foi modesto mas constante com o passar dos anos – sendo acompanhado, progressivamente, da chegada de equipamentos como semeadeiras e empilhadeiras, além da formação de novas cadeias, como a de beneficiamento de grãos. Na década de 70, veio finalmente o boom da soja.
Santa Rosa e Guarani das Missões passam, então, a disputar o título da “Berço Nacional da Soja” – a primeira acaba vencendo a queda de braço apenas em 2009, com a sanção de um projeto do legislativo estadual gaúcho oficializando o título. Já em 1966, outro marco na disputa foi a criação, em Santa Rosa, da Feira Nacional da Soja (Fenasoja), que acontece periodicamente desde então.
Em paralelo, Guarani das Missões também passa a se voltar para sua história com a soja – e, nisso, a figura de Ceslau Biezanko volta a ser rememorada. Trindade lembra que a origem da introdução do grão não é fácil de ser rastreada e, mesmo entre poloneses, há também pelo menos outros três candidatos a introdutores da soja no Paraná.
E o quanto destas primeiras experiências contribuiu para a lucrativa fase que chegaria décadas depois?
“Cientificamente falando, não há uma resposta elaborada. Mas a experiência obtida anteriormente pode ter ajudado a geração seguinte, porque é bem a região de Guarani das Missões que vai viver essa expansão nos anos 70. É uma coincidência bastante grande”, opina Trindade.
Das cidades gaúchas, segundo os pesquisadores que estudaram o tema, saíram famílias que conduziram o avanço da soja em direção ao Centro-Oeste brasileiro e, mais recentemente, às bordas da Amazônia.
“Onde você for neste Brasil, encontra alguém de origem alemã que planta soja”, resume Teresa Christensen. “Hoje, em Santa Rosa, já tem produção de leite, milho e outros, mas a soja ainda é a rainha”.
Outros lados da história
O avanço da soja pelo Brasil coloca em evidência outra faceta desta história: o da degradação do meio ambiente.
Esse cultivo é frequentemente associado por ambientalistas ao desmatamento que marca o Cerrado e rasteja em direção à Amazônia.
“Nós, historiadores e acadêmicos do Rio Grande do Sul, temos um embate grande contra pesquisas mais apologéticas, laudatórias dos antepassados. Temos que tentar ir além dessa visão de que o imigrante é o grande pioneiro: esta também é uma história de desmatamento da Mata Atlântica, uma exploração que prejudicou muito o solo da região. É uma história que continua”, destaca Trindade.
Se o passado deixa marcas no presente, certas ausências também dizem coisas. O nome de Guarani das Missões, por exemplo, remete às missões jesuíticas que, nos séculos 17 e 18, forçavam à catequização índios guaranis. Mas onde estão estes povos nos episódios posteriores, do século 20?
“A imigração europeia no Sul, ao mesmo tempo que é uma história de valorização dos grupos europeus, é uma história de apagamento das comunidades indígenas e dos grupos conhecidos como os caboclos”, aponta o historiador.
“Não podemos deixar de ver isso como um colonialismo interno brasileiro, que via o imigrante europeu como sinônimo de progresso, e a presença indígena e negra como de atraso”.