No Japão, os akitas são chamados de ikken isshu, ou seja, cães de uma só pessoa, em razão da sua lealdade e devoção ao seu dono. Dizem que a raça foi trazida à Honshu, principal ilha no Japão, pelas primeiras tribos de caçadores nômades cerca de 2.000 anos atrás.
Viviam nas florestas primitivas e eram tidos como companheiros e cães de caça. Também participavam de competições nas aldeias ao norte do Japão e dizem que a classe guerreira samurai, se inspirava na lealdade, coragem e espírito de combate dos cães Akita.
Morie Sawataishi nas montanhas Kurikoma com Shiro (Foto:Facebook)
Mas você sabia que a raça Akita esteve à beira da extinção durante a Segunda Guerra Mundial? Muitos cães foram abandonados à própria sorte, morrendo de frio ou fome; outros eram sacrificados para matar a fome da população e seu macio e farto pelo era usado na confecção de casacos para os soldados.
Para se ter uma ideia, até a rendição do Japão em 1945, havia apenas 16 Akitas no país. É aí que entra Morie Sawataishi, um homem que movido por sua paixão pela raça Akita, lutou com todas as forças para que a raça não desaparecesse no Japão. Porém, quando era criança, não gostava de cães.
Seu pai tinha um canil em Gojomai-machi, uma pequena aldeia ao lado do Lago Hachiro e apesar de conviver com os cães, Morie se sentia acuado pelos latidos e por sentir que os cães não gostavam de crianças. Porém, sua opinião mudou depois de conhecer um médico que morava na aldeia vizinha.
Casa de Morie e Kitako no Monte Kurikoma em 1975 (Foto: telegraph.co.uk)
Esse médico protegia alguns Akitas para que não fossem sacrificados durante a guerra. Ele contou, que várias pessoas estavam desesperadas por dinheiro e estavam vendendo as peles dos cães para os militares. Além disso, a polícia vinha apreendendo os cães em algumas aldeias da região.
Se continuasse assim, os cães seriam extintos em breve. Morie, com 30 anos na época, se sentiu abalado após ouvir esse relato. Ele lembrou de Hachiko, famoso cão que durante a década de 20 esperou seu dono em frente à estação de Shibuya por quase uma década sem saber que esse havia morrido.
Quando Hachiko morreu, um funeral foi realizado na presença de um padre e de centenas de pessoas que choravam, comovidos com sua obediência e lealdade.
Morie Sawataishi tinha 11 anos em 1927, quando viu no jornal que uma estátua de bronze em homenagem à Hachiko havia sido erguida em Tóquio.
Ele soube também que o governo japonês estava utilizando a história de Hachiko como propaganda para promover a lealdade ao imperador e isso o incomodava muito. Sem contar que logo depois a estátua foi derretida para que o metal pudesse ser usado na fabricação de armas de guerra.
Hachiko (Foto: Commons Wikimedia)
Depois da conversa com o médico, Morie teve uma ideia, enquanto caminhava para sua casa. Compraria os Akitas que encontrasse em seu caminho e tentaria protegê-los até que a guerra acabasse. Foi quando soube de uma Akita, neta de um premiado cão chamado Chiharu, que estava sendo vendida.
A intenção à princípio não era comprar, pois sabia que o preço poderia ser maior do que poderia pagar. Além disso, sua esposa, Kitako, poderia não gostar da ideia pois na situação difícil em que viviam por causa da guerra e ainda com dois filhos para sustentar, como poderiam alimentar um cão?
Mas quando Morie viu a pequena filhote de Akita, se encantou com seus olhos negros e doces. Seu pelo tinha manchas marrons, pretas e cinzas. Morie resolveu negociar o preço com o comerciante, reduzindo para 300 ienes. O salário de Morie na época era de apenas 50 ienes por mês.
Morie Sawataishi nas montanhas no norte de Honshu com um de seus akitas (Foto: telegraph.co.uk)
A caminho de casa, com a filhote escondida em uma cesta na parte de trás da carroça, Morie se achava um tolo, mas ao mesmo tempo estava se sentindo muito feliz. Mas o que ele diria à Kitako? Ele resolveu contar sobre o seu sentimento de proteger esse filhote até que as coisas melhorassem.
Como era de se esperar, Kitako não recebeu bem a notícia e ficou mais de uma semana sem falar com o marido por causa disso. Eles escondiam o cão em um pequeno galpão atrás da casa e Morie passeava com ela pela floresta todos os dias, no início da manhã e também antes de anoitecer.
Ela era uma cadela muito graciosa e não latia muito – parecia saber que estava escondida. Com o passar do tempo, Kitako acabou se afeiçoando à cachorrinha e ajudava a cuidar dela. Nos próximos anos, Kitako nomearia todos os cães de Morie, mas esta primeira não tinha nome. Era chamada simplesmente de “Inu”.
A guerra continuava e as coisas pioravam a cada dia. Tóquio foi bombardeada e os sogros de Morie se refugiaram em sua casa, em busca de comida e abrigo. Estavam em 17 pessoas vivendo sob o mesmo teto. Morie se orgulhava de conseguir proteger os cães mesmo com todas as dificuldades.
Ele começou a projetar um canil maior e mais confortável para ela. O novo canil parecia uma cabana de madeira. Havia uma área coberta na parte da frente e na parte de trás, além de um pátio ao ar livre onde a neta de Chiharu poderia tomar sol tranquila, sem o perigo de alguém perturbar seu descanso.
Morie e Kitako no dia do seu casamento em 1940 e Morie com Shiro (Foto: telegraph.co.uk)
Quando o Japão se rendeu no verão de 1945, havia apenas 16 akitas no país e Morie era dono de dois deles. No ano seguinte, com uma ninhada de akitas a caminho, Morie sediou a 1° exposição de cães do pós-guerra, uma reunião informal com aqueles que também haviam escondido cães durante a guerra.
A vontade de livrar a raça Akita da extinção foi fator decisivo na vida de Morie. Ele criou quatro filhos com Kitako e trabalhou para Mitsubishi nas usinas de energia até se aposentar aos 63 anos, mas nos momentos livres, Morie se dedicava totalmente aos seus cães, que a esta altura já eram muitos.
Com o passar do tempo, a pureza da raça akita começou a se estabilizar e Morie Sawataishifoi um dos grandes responsáveis para que isso acontecesse. Para Morie, a pureza da raça akita simbolizava o kisho, um espírito de luta, energia, lealdade, sagacidade, inteligência e coragem.
Muitas pessoas vinham à sua porta para comprar um de seus akitas, mas nada conseguiam. Por mais de 60 anos, Morie Sawataishi se recusou a vendê-los. Ao invés disso, Morie preferia doá-los, pois segundo ele nenhum dinheiro no mundo poderia pagar a devoção e o amor que sentia por estes animais.
Vivendo nas montanhas, Morie criava seus cães livremente e lá eles podiam correr pelas florestas durante horas, brincar na neve e caçar animais. Segundo Morie, os cães seguiam seus instintos, diferente dos cães de estimação de hoje em dia que são criados apenas para receber afeto e agradar seu dono.
Mamoru, filho de Morie Sawataishi e Samurai Tiger, campeão de 1968 (Foto: Facebook)
Ao longo de todo tempo, Morie cuidou e treinou mais de 100 akitas – muitos deles tornaram-se campeões em competições, além de excelentes caçadores. E segundo Morie, os cães que pareciam ser os mais problemáticos foram os mais leais e dedicados mais tarde e os que mais trouxeram-lhe alegria.
Princesa Vitória, uma de suas cadelas foi um exemplo. Foi deixada em sua porta, suja e ferida. Parecia ter o pelo marrom, mas depois de um banho, Morie se impressionou com sua pelagem branca. Depois de curada, Princesa Vitória, teve muitas ninhadas e tornou-se uma de suas melhores caçadoras.
Em 1970, Morie tinha experiência suficiente para saber quais eram os limites da resistência e coragem da raça Akita. Ele foi o treinador do Samurai Tiger, um akita preto e branco, campeão nacional em competições e o melhor caçador de sua prole. Infelizmente, o cão veio a falecer em 1979, após lutar com um urso.
Morie disse que existe apenas uma chance na vida de ter um cão como Samurai Tiger. “Ele me inspirou e recompensou todos os meus esforços nesses longos anos. Para mim, ele tinha tudo o que eu queria em um cão e tinha todas as qualidades que eu esperava ter em mim mesmo algum dia“.
“E não importa quantos cães você tenha, quando você perde um, o sentimento da perda é sempre terrível“. Shiro, foi outro cão Akita que marcou a vida de Morie. Morreu com aos 15 anos, uma idade considerada avançada para um akita e sua morte fez Morie se perguntar se não era hora dele partir também.
Ele planejou um grande funeral para o seu grande campeão branco, com a presença de um sacerdote xintoísta e de dezenas de pessoas. Morie Sawataishi ainda tinha dois jovens akitas para ocupar seu coração, mas por causa da idade, já não tinha tanta energia e disposição para levá-los para caçar.
Morie Sawataishi caçando com seus cães em 1970 (Foto:Facebook)
Em junho de 2008, um forte terremoto acometeu o Japão e o epicentro foi em Kurikoma, não muito longe da casa da família Sawataishi. Morie e Kitako, assim como os cães, foram forçados a se mudarem para os subúrbios de Tóquio, onde morava sua filha Ryoko, professora universitária de medicina veterinária.
Para Morie, a mudança não foi nada fácil, pois estava acostumado a viver nas montanhas, perto da natureza e com espaço de sobra e agora teria que se adaptar a um centro urbano lotado de gente. Após o terremoto, a região onde morava foi declarada inabitável devido ao perigo de deslizamentos.
Talvez esse fato tenha contribuído para que a saúde de Morie fosse duramente afetada. Ele foi levado ao hospital por causa da pressão arterial elevada e outras complicações, mas teimosamente recusou remédios e tratamentos. Em 22 de Outubro de 2008, aos 92 anos, ele morreu com Kitako ao seu lado.
Morie e Kitako no Akita Dog Show, em Odate, em 2005 (Foto:Facebook)
Morie Sawataishi faleceu mas deixou sua marca na história dessa lendária raça, que por muito pouco não desapareceu do Japão. Morie protegeu-os na hora mais oportuna e ajudou a restaurar as características genéticas da raça original, ameaçada por causa de cruzamentos com outras raças.
Sua esposa Kitako vive agora na cidade de Oyama, perto de sua filha Ryoko Ando, professora universitária e diretora de um pequeno hospital veterinário. Seu filho, Mamoru Sawataishi mora atualmente em Nova Iorque (EUA).
A história de Morie Sawataishi ficou conhecida através da obra “Dog Man: An Uncommon Life on a Faraway Mountain” (Dog Man: Uma Vida Incomum em uma montanha Distante), publicado em 2008 pela escritora Martha Sherrill. Infelizmente, o livro ainda não tem uma versão lançada em português.
Realmente trata-se de uma história incrível sobre a obstinação de um homem em resgatar uma das raças caninas mais antigas e nobres do Japão. Graças à ele, a raça Akita hoje é valorizada não só no Japão como no mundo inteiro e por esta razão, um akita pode chegar a custar alguns milhões de ienes.
Dog Man: An Uncommon Life on a Faraway Mountain
Autores: Martha Sherrill
e Laural Merlington
Idioma: Inglês
Editora: Tantor Media
Ano de Edição: 2008
Referências: Martha Sherrill, Telegraph.co.uk, Dog Man (Facebook)
Fonte: Japão em Foco