Definir a infância como um período de vida vulnerável, curioso, movimentado, cheio de descobertas e brincadeiras é algo que não nos causa estranhamento. Essa definição pedagogicamente ideal é algo recente, sabia? A verdade é que a infância como um período saudável e divertido é um conceito muito mais moderno do que alguns de nós podem imaginar.
A primeira pessoa a teorizar sobre o assunto foi o historiador francês Philippe Ariès, que publicou um livro a respeito: “Centuries of Childhood: A Social History of Family Life”. A obra em si é até hoje bastante criticada graças às evidências usadas pelo autor, que são consideradas simplistas demais por outros pesquisadores, mas aí é outra discussão. O que importa, historicamente falando, é que Ariès foi o primeiro a tratar a infância como uma construção social moderna.
Atualmente, muitos estudos acadêmicos estudam a infância como um modelo social moderno, afinal a descrição que demos no primeiro parágrafo desse texto não soaria nada familiar há dois séculos, por exemplo – tempo considerado curto quando estudamos a evolução da humanidade.
O All That is Interesting resgatou uma série de estudos mais recentes realizados sobre o tema, na tentativa de compreender melhor os conceitos sociais e evolutivos a respeito da infância. Para a historiadora Paula S. Fass, esses novos trabalhos revelam que a perspectiva social de que crianças são sexualmente inocentes, economicamente dependentes, emocionalmente frágeis e supostamente criadas para brincar e descobrir o mundo é, na verdade, uma maneira muito limitada de visualizar a vida infantil na sociedade ocidental moderna.
Fass explica que, ainda que muitos de nós tenhamos experimentado uma infância mais pedagogicamente aceitável, esse é um modelo novo, típico do século XX. A historiadora nos lembra que, durante o Iluminismo, que foi dos anos de 1620 a 1780, houve uma tentativa de um novo modelo de infância – à época, os filósofos lutavam para se livrar das ideologias tradicionais e frequentemente irracionais da Idade Média.
Depois, nos séculos XVII e XVIII, a ciência e a filosofia começaram a ser mais valorizadas dentro dos modelos sociais. Dessa maneira, a atenção à infância começou a aumentar. O filósofo iluminista John Locke sugeriu, em 1689, que as pessoas começassem a olhar a infância de modo racional e não apenas religioso. Considerado pai do Iluminismo, Locke sugeria que todos tentassem pensar por si mesmos e, dessa forma, seus conceitos a respeito de educação logo começaram a fazer parte de suas obras.
Locke, então, começou a contestar modelos de educação autoritários, sugerindo que os pais e mães aprendessem a deixar que seus filhos brincassem livremente e aproveitassem seus anos de criatividade, já sugerindo que essas interações lúdicas e livres formariam adultos mais felizes e realizados. O objetivo de Locke ia além da educação no âmbito familiar: para o filósofo, era ideal que as escolas adotassem métodos mais divertidos de ensino, de modo que a aprendizagem pudesse ser um período lúdico para os pequenos.
Ainda que a ideologia de Locke nos pareça óbvia hoje em dia, vale lembrar que, quando ele a propôs, brincadeiras e educação lúdica eram consideradas desperdício de tempo. Só para você ter ideia, na época de Locke, o único “livro” para crianças era uma cartilha de madeira com a inscrição do alfabeto, números de zero a nove e uma pequena passagem bíblica.
Se ainda não parece divertido o suficiente para você, saiba que a tal cartilha não tinha apenas propósitos educativos, mas também era uma ferramenta de punição. Ou seja: a mesma tábua que as crianças usavam para estudar servia também para que elas apanhassem caso fizessem algo de errado.
Você já deve imaginar que assuntos relacionados aos direitos da criança e do adolescente sequer existiam, e a verdade é que, especialmente entre os mais pobres, as crianças eram vistas como mais alguém para ajudar no trabalho. Na Inglaterra, por exemplo, por volta dos anos de 1660, crianças eram comumente forçadas a trabalhar limpando chaminés, usando seus cotovelos, costas e joelhos para subir e descer pelas paredes das chaminés repetidas vezes.
Essas crianças não apenas eram forçadas a fazer isso como apanhavam frequentemente, passavam fome, se machucavam e, claro, apresentavam problemas sérios de saúde. Há registros de crianças que morreram presas em lareiras. As pessoas só tiveram a ideia de criar materiais apropriados para limpar essas estruturas em 1875, quando passou a ser ilegal que crianças realizassem esse trabalho.
O legado de Locke começou a se espalhar depois de sua morte. Além disso, vale frisar que, em 1600, apenas 25% da população era alfabetizada – esse percentual subiu para 70 em 1800 e, na medida em que as pessoas liam mais, as ideias novas se espalhavam e, logicamente, o pensamento crítico começou a ser mais bem desenvolvido socialmente.
Nos anos de 1620, cerca de 6 mil livros haviam sido publicados. Em meados de 1710, esse número tinha subido para 21 mil e, ao final do século, a marca tinha alcançado 56 mil. O resultado? Ideologias medievais e baseadas apenas em convenções religiosas muito restritas começaram a perder espaço.
Depois de Locke, Jean-Jacques Rousseau escreveu novos importantes estudos que davam continuidade à ideologia iluminista. Na obra “Émile”, Rousseau explora o lado inerentemente puro da infância e, além disso, questiona a relação do homem com a natureza – para o filósofo, a natureza era a melhor educadora moral e, nesse sentido, ele acreditava que as crianças deveriam ter mais experiências naturais.
Atualmente, tanto as propostas de Locke quanto as de Rousseau seguem praticamente inquestionadas. O fato é que, pouco mais de 250 anos depois da publicação de “Émile”, vivemos em uma era em que o convívio com a natureza vem sendo, de fato, cada vez mais valorizado. Ainda assim, é curioso perceber que, nos EUA, por exemplo, o trabalho infantil foi proibido somente em 1938.
Em 1959, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a “Declaração dos Direitos da Criança”. Em 1989, a Convenção sobre os Direitos da Criança foi adotada pelo mesmo órgão e, um ano mais tarde, foi também ratificada pelo Brasil, deixando claro que o trabalho infantil é desumano e ilegal. Mesmo assim, ainda hoje em nosso país o número de crianças trabalhando ilegalmente é assustador: 4,4 milhões. Dessas, 273 mil sofrem acidentes enquanto são exploradas.