Em Kamikatsu, descartar lixo não é tarefa simples.
A cidade localizada na província japonesa de Tokushima não possui caminhão de coleta, por isso seus 1.517 habitantes precisam lavar e secar todo o material que desejam descartar, antes de levá-lo para uma central e lá fazer a separação em 45 categorias de lixo.
No caso de uma garrafa PET, por exemplo, deve-se esvaziá-la totalmente, retirar a tampa, o invólucro e depositar cada item na caixa correspondente.
Essa separação minuciosa é feita manualmente pela própria população.
Os projetos que seguem o conceito de 3R (reduzir, reaproveitar e reciclar) ajudaram o pequeno município localizado entre montanhas e floresta alcançar um dos mais altos índices de reciclagem de resíduos: 81%.
Kamikatsu se tornou referência mundial, mas ainda não atingiu a meta que se propôs sete anos atrás: eliminar totalmente o desperdício em 2020. Isso significa que, a partir deste ano, todo lixo que sair das 800 residências de Kamikatsu não terá o aterro ou o incinerador como destino final.
Houve resistência de parte da população quando o rigoroso programa de coleta seletiva foi adotado, duas décadas atrás, ainda com 22 categorias de lixo. Agora são 45.
“Não existe nenhuma mágica. Nem todos os moradores estão totalmente conscientes e nem se esforçam o suficiente para evitar o desperdício, por isso precisamos mostrar sempre o porquê e a importância de certas medidas”, diz Akira Sakano, presidente do Conselho de Administração da Academia Zero Waste, selecionada como Global Shapers (formadores globais) do Fórum Econômico Mundial do ano passado.
A organização sem fins lucrativos foi criada para ajudar Kamikatsu a cumprir a meta do lixo zero.
Para envolver a população, o grupo tem realizado várias abordagens, como aulas sobre educação ambiental para crianças, sistema de certificação ao comércio com pouco desperdício e cartão de pontos.
Na opinião de Sakano, o sistema também colabora para o bem-estar social principalmente de idosos, a maioria da população. Para essas pessoas, o município oferece o serviço de transporte do lixo até o centro de coleta, o que possibilita monitorar as condições de saúde do morador.
Para conseguir o apoio da população, a NPO investe em informação.
“É preciso fornecer dados para que a pessoa possa entender tudo aquilo. No lugar onde devem ser depositadas latas de alumínio, por exemplo, estão afixados cartazes dizendo o quanto o processo de reciclagem vai custar ou beneficiar a comunidade”, diz Sakano.
O custo anual de gerenciamento do programa de desperdício zero em Kamikatsu é de cerca de 6 milhões de ienes (R$ 232.380) e a reciclagem garante retorno de 1 milhão de ienes (R$ 38.730). Parece pouco, mas ele representa um terço do que era gasto anteriormente com a incineração, sem contar o custo ambiental desse processo.
Duas décadas atrás, Kamikatsu não era diferente da maioria das cidades. Na época, o lixo era classificado em nove tipos e grande parte ia para os incineradores. Porém, a queima de resíduos gerava dioxinas e furanos, dois compostos prejudiciais à saúde, em níveis além dos permitidos por lei nacional.
A saída foi criar o Programa de Resíduos Zero, em 2003. Daí surgiram projetos como o Centro Kurukuru (circular, ou rodízio em japonês), que recebe 15 toneladas de materiais usados por ano para doação. No caso de tecidos de quimonos e outros vestuários, um grupo de artesãs usa a matéria-prima para criação de bolsas e brinquedos, e colocam o produto à venda.
O comércio também aderiu ao programa e passou a vender itens como arroz, óleo e molho de soja (shoyu) a granel, apenas o necessário para consumo, pensando em reduzir o lixo e evitar a perda de alimentos.
O prédio vermelho da cervejaria Rise&Win é outra referência de não-desperdício. A obra foi feita totalmente de materiais recicláveis e ganhou o WAN Sustainable Building Award 2016, que premia edifícios que aliam design e preocupação ambiental. As janelas largas de casas abandonadas e os lustres feitos com garrafas de vidro reaproveitadas são a marca do local.
Barreira do plástico
Sakano defende que é preciso mudar o estilo de vida para ter menos desperdício e mais sustentabilidade. Mas há certas matérias-primas que não podem ser totalmente eliminadas, como os plásticos. Embora produza menos lixo per capita em comparação a outros países desenvolvidos, o Japão é o segundo que mais gera esse tipo de resíduo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos.
E de onde sai tanto plástico? É só dar uma olhada nas prateleiras de comidas para encontrar a resposta.
No Japão, biscoitos e doces costumam ser embalados por unidade e depois empacotados ou colocados em caixas que, por sua vez, também são envolvidas em papel ou outro plástico.
Ao ser vendido, o produto é colocado em sacolas e o vendedor ainda pergunta se é preciso de um saco extra, caso seja para dar de presente. Esse excesso que alguns consideram parte do “omotenashi” (espírito de zelo, cuidado e da hospitalidade) contrasta com o conceito de “mottainai” (não desperdício).
O uso de plástico em abundância se tornou um problema mais sério no Japão a partir de 2018, quando a China resolveu proibir a entrada do produto para reciclagem. Até então, os chineses eram responsáveis pela importação de mais de 50% desse tipo de material vindo de países como Japão, Estados Unidos, Alemanha e Reino Unido.
O novo destino passou a ser vizinhos do Sudeste Asiático, mas aí também já há resistência. Após importar mais de 750 mil toneladas de plástico em apenas seis meses (volume equivalente à soma de 2016 e 2017), a Malásia decidiu limitar sua entrada pelo fato de o material não chegar suficientemente reciclado. A cidade de Jenjarom hoje está sufocada por 17 mil toneladas do resíduo plástico abandonado por 33 usinas de reciclagem que foram fechadas por irregularidades.
No Japão, o governo anunciou um plano para reduzir em um quarto as 9,4 milhões de toneladas de plástico produzidas no país até 2030. Uma das medidas a ser implantada neste ano obriga supermercados e lojas de conveniência a cobrarem por cada saquinho plástico de compra.
Modelo Yokohama
O plástico não é o único resíduo a poluir o meio ambiente. Relatório do Banco Mundial aponta crescimento do volume de lixo no mundo em ritmo maior do que o da urbanização, e estima para 2050 cerca de 3,4 bilhões de toneladas de lixo, ou 70% mais do montante registrado em 2016, de 2,01 bilhões de toneladas produzidas nas cidades.
Segunda maior cidade do Japão, Yokohama tem compartilhado sua bem-sucedida política de gerenciamento de lixo com a Tailândia, as Filipinas e a Indonésia. A metrópole japonesa conseguiu reduzir o volume anual de lixo doméstico sólido de 1,5 milhão de toneladas em 2003 para 1,1 milhão em 2005 por meio do Plano G30 de reciclagem.
A meta foi alcançada cinco anos antes do prazo e possibilitou o fechamento de duas das sete usinas de incineração.
A atual média de lixo doméstico combustível coletado na cidade se mantém em 1,1 milhão de toneladas por ano.
O material é queimado a temperaturas de quase 950 graus centígrados e gera energia para aquecer piscinas.
Após a queima, o volume do resíduo sólido é reduzido em 40 vezes e depois de tratado, lançado no cais de Minami Honmoku, onde foram construídos tanques de concreto com capacidade para cem mil metros cúbicos cada (o equivalente a 280 piscinas de 25 metros). A previsão é que esse local possa receber as cinzas do lixo incinerado nos próximos quarenta anos.
Para conter o crescimento do lixo apesar da urbanização, Yokohama promove desde 2009 a campanha do 3R. Os 3,7 milhões de habitantes da metrópole precisam seguir regras rigorosas de separação de lixo em 15 tipos divididos em 10 categorias.
Segundo a Secretaria de Reciclagem de Recursos e Lixo da cidade, a separação antes do descarte é obrigatória e a reincidência de não cumprimento mesmo após repetidas advertências pode render multa no valor de 2 mil ienes (em torno de R$ 76).
Em comparação a Kamikatsu, com 45 categorias de lixo, a lista de Yokohama é mais enxuta. Tem o lixo incinerável (restos de comida e fraldas descartáveis); o não incinerável; pilhas secas; frascos de spray; recipientes ou materiais de embrulho de plástico; latas, garrafas e garrafas PET; pequenos objetos metálicos; papéis velhos; panos velhos; lixo de grande porte.
Para entender tantas regras, a maioria das cidades japonesas distribui livretos a cada domicílio e em diversos idiomas. Além de observar a natureza do material, é preciso prestar atenção ao tamanho do lixo, pois dependendo do porte haverá cobrança de taxa.
No caso de ar-condicionado, televisores e máquinas de lavar roupa, a coleta deve ser feita por lojas de eletrodomésticos para os aparelhos serem reciclados pelo fabricante, mediante pagamento.
A coleta seletiva é um tema que gera muita intriga entre a vizinhança no Japão. No complexo habitacional Homi Danchi de Toyota (província de Aichi), muitos problemas ocorrem por desconhecimento das regras. O conjunto foi construído a princípio para abrigar trabalhadores da montadora de automóveis de mesmo nome e tem atualmente 7.200 moradores, sendo mais da metade deles brasileiros.
Paulo Fujita, de 74 anos, é um deles. Chegou em 1990 e agora, aposentado, faz parte da Associação dos Moradores do Homi Danchi, ajudando na comunicação entre moradores japoneses e brasileiros, e muitas vezes resolvendo atritos, atuando inclusive como “xerife do lixo”.
Ele costuma verificar sacos de lixo que ficam amontoados perto do bloco de apartamentos onde mora, na intenção de corrigir possíveis separações irregulares. “Hoje é menos (comum), mas ainda acontece de misturarem lixo incinerável com não-incinerável, ou então colocarem em sacos de cor errada”, explica Fujita.
No Japão, a separação é diferente em cada cidade, mas há a regra básica que não muda: levar o lixo ao depósito até as 8h da manhã, obedecer aos dias de coleta e colocar o resíduo em sacos semitransparentes.
“Com o tempo, todo mundo aprende”, diz Fujita.