Após 20 anos de preparativos e quase um século de ressentimentos, o então imperador japonês Akihito desembarcou na capital chinesa. A visita, realizada em 1992, marcou uma histórica retomada das relações entre dois povos que há mais de 2 mil anos mantêm profundos laços culturais, comerciais e de amizade. Mas que, nos últimos tempos, andavam se estranhando em disputas por território e hegemonia política que resultaram em episódios sangrentos.
Na bagagem, Akihito – cujo período no trono japonês foi chamado de Heisei, ou aquisição da paz – levou para a China um longo discurso. Nele, lamentava o severo sofrimento causado pelos japoneses, em referência aos conflitos entre os vizinhos causados pelo expansionismo levado a cabo por seu pai, Hirohito, antes e durante a Segunda Guerra Mundial.
É claro que simples palavras não apagaram os ressentimentos, mas serviram para reviver a memória do passado de cooperação e de amizade entre os dois países. Ambos possuem muitas características culturais equivalentes e, se ainda persistem as polêmicas sobre um possível antepassado comum entre os dois povos, não há dúvidas da influência cultural da China sobre o Japão.
“Os japoneses compartilham com os chineses o costume do cultivo do arroz, o budismo, o confucionismo e outras tradições religiosas. Muito da cultura tradicional japonesa é derivada de modelos chineses, especialmente pintura, escultura e outras artes”, diz Peter Duus, professor de história do Japão da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Para ele, a difusão da cultura chinesa se deu principalmente pelas rotas comerciais e pelos intercâmbios entre religiosos.
O auge desse intercâmbio ocorreu na Dinastia Tang, na China, entre 618 e 907, e foi, na maior parte do tempo, amistoso. Porém, durante um breve período, essa influência foi uma imposição chinesa, que submeteu os japoneses a acordos de vassalagem. “O Japão nunca foi colonizado pela China, mas, quando ela era mais poderosa, entre os séculos 8 e 10, os japoneses tinham de enviar homens para servir ao Império Chinês e pagar-lhe tributos”, afirma Xin Liu, do Departamento de Antropologia da Universidade da Califórnia, em Berkeley, Estados Unidos.
Segundo ele, foi nessa época que a escrita chinesa chegou ao Japão. “Apesar de as línguas serem completamente diferentes, os japoneses adotaram como forma de escrita os kanjis, ideogramas de origem chinesa. Hoje, a escrita japonesa ainda usa muitos desses caracteres”, diz. Segundo Peter Duus, que é autor de The Cambridge History of Japan (A História do Japão da Editora Cambridge, em tradução livre), as relações entre chineses e japoneses foram cordiais na Antiguidade e na Idade Média.
Mas as coisas mudaram com a chegada dos mongóis à China. Expansionista, o exército de Gengis Khan conquistou grande parte do continente asiático no século 13, e quando seu neto Kublai Khan (1215-1294) assumiu o trono chinês, o Japão se tornou o próximo alvo. Os mongóis, que não sabiam navegar, recrutaram marinheiros chineses e coreanos para invadir a ilha.
Por duas vezes Kublai tentou chegar ao Japão. Em ambas as tentativas, nos anos de 1274 e 1281, foi repelido. “Textos antigos contam que os japoneses tiveram uma ajuda providencial. Nas duas investidas, fortes tempestades afundaram parte da frota mongol”, conta Victor Koschmann, historiador da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos. “Entre mito e realidade, o fato é que os invasores foram expulsos antes que desembarcassem”, completa. Em agradecimento, os vitoriosos apelidaram esse fenômeno de kamikaze ou ventos divinos.
Passada a turbulência, os dois países retomaram as boas relações, baseadas no comércio. Enquanto chineses vendiam grandes quantidades de chá, especiarias e seda para os japoneses, os ilhéus exportavam alimentos. “Entre os séculos 14 e 15, a única animosidade foram ataques de piratas japoneses – e coreanos –, que saqueavam barcos e comunidades costeiras chinesas”, diz Duus.
O fato novo que viria a romper a calmaria foi a unificação do Japão, em 1583. Depois de 200 anos de guerras entre os senhores de grandes clãs, o país estava sob nova administração: Toyotomi Hideyoshi (1537-1598) chegara ao poder após violentas batalhas, nas quais usou seu exército de samurais. Grandes batalhas exigem um exército poderoso. E um exército poderoso sempre exige mais batalhas. Foi assim que, após dominar grande parte do território que hoje forma o atual Japão, Hideyoshi e sua máquina militar pretendiam conquistar a península coreana, a China, as Filipinas e a Índia.
“Hideyoshi enviou uma armada para a Coreia com a intenção de conquistar a China. As tropas da Dinastia Ming entraram na luta e os expulsaram”, afirma Koschmann. A intenção era entrar na Coreia, que tinha defesas mais frágeis, para depois invadir a China. Assim como Kublai Khan, Hideyoshi tentou duas vezes conquistar o vizinho, em 1592 e 1597. E, assim como Khan, foi rechaçado. Um ano depois da sua última tentativa, Hideyoshi morreu.
Com isso, o clã Tokugawa assumiu o poder e, três décadas depois, decidiu fechar o país. Entre 1633 e 1867, ficou proibida a entrada de estrangeiros no Japão – assim como a saída de japoneses –, sob pena de morte. Durante esse período, apenas alguns poucos mercadores chineses e holandeses tinham a permissão de desembarcar no porto de Nagasaki para realizar um pequeno, porém constante, comércio.
A pressão ocidental – e um ultimato americano pela abertura dos portos japoneses – colaborou para o fim da já enfraquecida Dinastia Tokugawa. A mudança foi radical. De uma fechada sociedade feudal, o Japão se transformou rapidamente em uma potência militar. Menos de 50 anos da abertura, o país deu início a uma nova fase em seu relacionamento com a vizinhança. Muito mais moderno e violento.
Para o americano Allen Carlson, especialista em relações exteriores da Universidade de Cornell, a face imperialista do novo Japão foi responsável pelos conflitos entre os dois países a partir daí. Primeiro foi a Guerra Sino-Japonesa (1894-1895) pelo controle da península da Coreia. Durante o isolamento japonês, a China exercera grande influência sobre aquele país e, no início da década de 1890, o próprio governo coreano solicitou a intervenção militar chinesa para enfrentar uma rebelião interna. Agora aberto e fortalecido, o Japão não gostou nadinha da presença chinesa tão próxima de seu território e enviou tropas para a Coreia.
A briga foi curta. E feia. “O moderno e ocidentalizado Exército japonês causou grandes baixas aos numerosos chineses”, diz Joshua Fogel, historiador na Universidade de York, em Toronto, no Canadá. Os japoneses ocuparam a Coreia e avançaram até a Manchúria, no nordeste da China, onde ficavam um importante porto e grandes reservas de carvão.
“Além de causar mortes e perdas para ambos, a guerra marcou um distanciamento político entre os dois países, que agora estavam em lados diferentes: de um lado, o moderno Japão, alinhado às potências ocidentais, e do outro os chineses, isolados em sua cultura agrária e milenar.”
A guerra terminou em 1895 com a assinatura do Tratado de Shimonoseki, pelo qual os chineses derrotados tiveram que pagar indenizações e entregar Taiwan e outras ilhas para o Japão. Com o fim do conflito, a Coreia tornou-se independente, mas os japoneses não estavam dispostos a deixar o continente e, em 1909, anexaram a península coreana.
A China não teve como reagir e, em 1931, Tóquio anexou toda a região ao Império Japonês. Mas o pior ainda estava por vir. Um incidente na fronteira entre tropas japonesas na Manchúria e soldados chineses foi o estopim da segunda Guerra Sino-Japonesa (1937-1945). A invasão japonesa foi marcada por episódios de brutalidade, como a tomada de Nanking (veja no quadro da página ao lado). “A violência das tropas japonesas durante a longa tentativa de submeter os chineses foi a principal causa de ressentimento entre os dois países”, diz Koschmann.
Com a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial, o país precisou abdicar de seu Exército e sair dos territórios conquistados no Sudeste Asiático e Pacífico. A China, por outro lado, passou por uma revolução comunista, que levou o líder Mao Tsé-Tung ao poder em 1949, isolando o país. Nas décadas seguintes, apenas acordos pós-guerra e comerciais foram firmados entre as autoridades dos países. Mas as relações diplomáticas, no entanto, eram inexistentes.
No início da década de 1970, os Estados Unidos, que tinham o Japão como um de seus maiores aliados, se aproximaram do país comunista. Com isso, os americanos facilitaram uma retomada das relações entre os dois vizinhos, o que resultou numa histórica visita do primeiro-ministro japonês a Pequim em 1972. Mas, somente 20 anos depois, o imperador Akihito, filho de Hirohito, governante do país durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa, visitou a China.
Dessa vez, o país era uma potência econômica – e militar, afinal tem a maior população do mundo e o maior Exército também. “Apesar da animosidade histórica e do potencial de conflito em interesses de segurança, os assuntos econômicos têm prevalecido nas conversas entre os dois lados”, diz o especialista Allen Carlson.
E mais uma vez o comércio, aquele mesmo praticado desde a Antiguidade entre os habitantes da ilha e do continente, voltou a ser o mais importante para os dois lados.