A euforia de sete anos atrás, quando o Japão conquistou o direito de sediar os Jogos Olímpicos pela segunda vez, transformou-se em temor.
Em estudo de 2016, o professor da escola de negócios da Universidade de Oxford, Bent Flyvbjerg, constatou que sediar uma Olimpíada é, essencialmente, um péssimo negócio. De acordo com ele, esses megaeventos são extraordinariamente caros e deficitários.
Com a Tóquio 2020, o país asiático tenta fugir desse estigma, fazendo ajustes para reduzir custos, porém sem se descuidar do rigor com o cronograma.
O Japão sediou os Jogos Olímpicos pela primeira vez em 1964, quando surpreendeu o mundo ao mostrar sua reconstrução após a Segunda Guerra Mundial.
Agora, os japoneses querem promover o multiculturalismo, a sociedade 5.0 — conceito lançado pelo país que prevê o uso de novas tecnologias para melhorar a qualidade de vida da população — e os esforços feitos para reconstruir as áreas devastadas pelo tsunami e consequente desastre nuclear de 2011.
O roteiro da segunda olimpíada japonesa em 56 anos vinha sendo meticulosamente preparado muito antes de o país conquistar o direito de sediar o evento, em 2013. A projeção de custos, porém, subiu tanto que se tornou um dos grandes desafios, ainda maior do que amenizar os efeitos do verão úmido japonês.
Os custos diretos dos Jogos de 1964 chegaram a cerca de US$ 300 milhões (em valores atualizados), segundo o Comitê Organizador das Olimpíadas. Porém, a entidade observa que se forem considerados outros custos indiretos relacionados ao evento, o total chegou a US$ 9 bilhões (3,1% do Produto Interno Bruto do Japão daquele ano).
Para receber os Jogos, o país investiu pesado na construção de estradas e na implantação do serviço de trem-bala (shinkansen) e da linha de metrô, considerados até hoje os grandes legados do megaevento.
Agora em 2020, a estimativa dos organizadores é realizar os Jogos com investimento direto de US$ 12,6 bilhões, bem maior que a avaliação inicial, de US$ 7,3 bilhões, apresentada durante a candidatura.
O orçamento final, entretanto, pode crescer ainda mais, de acordo com a Agência de Auditoria do Japão. Em relatório divulgado em dezembro, a instituição prevê custo final de US$ 23 bilhões, argumentando que cerca de US$ 9,76 bilhões referentes a gastos relacionados à Tóquio 2020 não teriam sido considerados pelos organizadores.
Para o Comitê Organizador das Olimpíadas, as contas estariam equilibradas. A mais recente versão do balanço diz que os gastos operacionais seriam de US$ 5,6 bilhões, já cobertos com as cotas de patrocínio, licenciamento de produtos, venda de ingressos e fundos do Comitê Olímpico Internacional (COI).
Ao longo dos sete anos de preparação, o Japão transformou seu plano inicial de Olimpíada compacta. Se em 2013 a intenção era ter 85% das instalações esportivas a 8 quilômetros da Vila Olímpica, agora quase metade se encontra fora de Tóquio.
Michiko Makino, responsável pelo setor de imprensa do Comitê Organizador dos Jogos, diz que a maioria das mudanças foi motivada pelos custos elevados. “Foi por isso que decidimos usar estruturas preexistentes. Das 43 instalações necessárias para as provas, 8 são novas, 10 temporárias e 25 já estavam prontas, sendo que algumas datam dos Jogos de 1964”, diz.
No caso da Vila dos Atletas, prédios residenciais serão temporariamente utilizados durante o período dos Jogos, depois reformados e postos à venda junto com os dois blocos construídos no local.
A mais recente mudança ocorreu no final do ano passado por outro motivo. O COI decidiu transferir as provas de marcha atlética e maratona para Sapporo (província de Hokkaido), a mais de 800 quilômetros ao norte de Tóquio, para resguardar a saúde dos atletas devido às altas temperaturas na capital japonesa.
A governadora de Tóquio, Yuriko Koike, deixou claro que a decisão não foi unânime, mas ficou um pouco aliviada porque, nesse caso, os gastos com a alteração não serão repassados para o governo metropolitano. Em diversas ocasiões, ela reclamou da divisão das despesas dos Jogos. A discussão é sobre o que seriam “custos administrativos regulares” para a cidade e o que é “custo direto do evento”.
Legados
Experiências passadas trazem ensinamentos sobre o que é possível evitar ou mesmo repetir. A Rio 2016 deixou um legado de dívidas, promessas não cumpridas, como a Floresta dos Atletas, além de obras que acabaram abandonadas com o apagar da Chama Olímpica.
Do ponto de vista esportivo, porém, o evento foi considerado um sucesso, além de ser elogiado pela inclusão. Também introduziu o conceito de sustentabilidade nos Jogos Olímpicos, a que Tóquio 2020 pretende dar continuidade.
No evento japonês, ela será associada à tecnologia e à inovação, com carros autônomos, robôs e medalhas produzidas com material coletado de aparelhos eletrônicos e celulares reciclados. No caso das tochas olímpicas e paralímpicas, foi usado alumínio recuperado de habitações temporárias construídas para as vítimas do tsunami de 2011.
Segundo Makino, Tóquio 2020 deverá deixar um legado intangível para as gerações futuras, por meio da experiência de participar de um evento com pessoas de diversas origens em um único lugar e dentro do lema “Unidos pela Emoção”. “Pelo esporte, queremos celebrar a diversidade e a inclusão para a mudança da sociedade, além do respeito humano.”
O Japão tem mais um objetivo. Quer fazer da Tóquio 2020 os “Jogos da Recuperação e Reconstrução”. O revezamento da tocha olímpica começará no dia 26 de março, em Fukushima, e percorrerá inicialmente as províncias atingidas pelo tsunami e pelo desastre nuclear em 2011. Depois, percorrerá o restante do país até chegar a Tóquio para a abertura, em 24 de julho.
Uma questão surgida às vésperas dos Jogos, porém, perturba o mundo olímpico. A cinco meses do início da Tóquio 2020, em 24 de julho, cresce o debate sobre um possível adiamento ou cancelamento da Olimpíada e da Paralimpíada, na mesma proporção em que se elevam os temores sobre infecção pelo novo coronavírus.
Desde o surgimento dos primeiros casos, em dezembro, já são 105 mil infectados e quase 3.600 mortos. O Japão é um dos países mais afetados.
O cenário atual lembra o período que antecedeu a Rio 2016, em que o governo foi pressionado a cancelar a Olimpíada em razão do vírus da zika. À época, alguns atletas se recusaram a participar do evento no Brasil.
O presidente da Comissão de Coordenação dos Jogos, John Coates, disse que o atual surto de coronavírus é uma questão inesperada, que precisa ser enfrentada. A ministra da Olimpíada, Seiko Hashimoto, afirmou que o governo japonês está “fazendo de tudo” para realizar o evento na data prevista. Ela admitiu, no entanto, a possibilidade de adiamento dos Jogos, que seriam realizados ainda neste ano — o Comitê Olímpico Internacional (COI), porém, rechaça a possibilidade.
Apesar do pessimismo causado pela disseminação do coronavírus, o consultor do Comitê Olímpico Brasileiro Nobuyuki Hiramatsu diz que os japoneses estão na expectativa de realizar os Jogos para impressionar os espectadores estrangeiros. “Muitos japoneses foram para a Rio 2016 preocupados com vírus da zika, mas chegando lá o medo desapareceu. Espero que seja assim também com o coronavírus.”
Ele, que já foi ao Brasil várias vezes e ganhou o apelido de “jabaiano”, faz parte do Comitê Olímpico do Brasil desde 2016 e dá apoio aos atletas brasileiros no Japão.
Hiramatsu diz que Rio 2016 e Tóquio 2020 são diferentes devido às características de cada povo. “Os brasileiros estão acostumados a grandes eventos, como o Carnaval, e conseguem se adaptar fácil a mudanças. Já o povo japonês respeita o processo e se preocupa em preparar tudo cuidadosamente”, diz.
Sequência de estresse
Desde a confirmação da Tóquio 2020, há sete anos, os organizadores têm enfrentado um caminho tortuoso. Seu logotipo, por exemplo, teve de ser substituído após acusações de plágio — ele teria formas semelhantes ao trabalho que o designer belga Olivier Debie criou para o Teatro de Liège.
Além disso, o governo japonês decidiu abandonar o projeto original do Estádio Nacional Olímpico, pouco antes do início das obras, em 2015. Assinado pela arquiteta iraniana Zaha Hadid, ele tinha sido aprovado pelo Conselho Esportivo do Japão e custaria US$ 2,1 bilhões, valor três vezes maior do que o previsto inicialmente.
Em um segundo concurso, foi escolhido o projeto do arquiteto japonês Kengo Kuma, de US$ 1,44 bilhão. O novo estádio já foi inaugurado, assim como todas as outras novas instalações previstas.
Mesmo com os percalços, o calendário tem sido seguido à risca e, na opinião de críticos, sempre sob pressão. A Federação Internacional dos Operários de Construção e Madeira (BWI, na sigla em inglês) divulgou, em maio do ano passado, relatório apontando problemas como salários baixos e excesso de trabalho durante as obras do Estádio Nacional, além de duas mortes relacionadas à Tóquio 2020.
O documento foi preparado a partir de entrevistas com trabalhadores da construção civil e menciona que a falta de mão de obra colocou imensa pressão nos operários. “A Olimpíada de Tóquio era a oportunidade do Japão abordar e resolver problemas na construção civil do país, mas eles só pioraram”, afirma o secretário-geral da BWI, Ambet Yuson.
Há queixas também sobre o custo social das Olimpíadas. No Rio, por exemplo, 3.000 famílias foram realocadas para dar lugar às obras. Segundo o grupo de ativistas Hangorin no Kai (organização antiolímpica do Japão), a Tóquio 2020 levou ao deslocamento forçado de habitações públicas e de sem-tetos para a construção do novo estádio e outros projetos de modernização.
Indiferentes aos ventos contrários, cidades que servirão como base para a aclimatação de atletas promovem eventos paralelos que buscam estimular o intercâmbio com torcedores estrangeiros e lapidar o omotenashi (palavra em japonês para se referir à arte de servir e receber as pessoas).
A região de Ota (em Tóquio), uma das bases do Brasil, tem oferecido cursos de português e promoveu recentemente aulas para ensinar o samba e o hino nacional brasileiro. “É bonito, mas muito comprido e difícil. Bem diferente do Kimigayo (hino do Japão)”, diz um aluno. Na sequência, ele perguntou em japonês: “Como digo em português ‘quero ser seu amigo’?”.