O Japão promove duas comemorações de Dia dos Namorados. A primeira segue relativamente a tradição ocidental, e a segunda é uma invenção do próprio país.
No dia 14 fevereiro, as mulheres do Japão presenteiam os homens com o chamado giri choco — “giri” significa “obrigação” e “choco”, “chocolate”. Ou seja, elas dão chocolate a seus amados.
Um mês depois, no dia 14 de março, celebra-se o Dia Branco, quando eles as presenteiam de volta com itens brancos, como marshmallows, bolos ou doces, lenços ou papel de carta e, às vezes, até mesmo joias cravejadas de pérolas.
A festa reflete um valor cultural profundamente enraizado na sociedade japonesa, o de demonstrar gratidão. Mas a celebração dá sinais de declínio de popularidade em meio a mudanças mais amplas em curso no país asiático.
Diversão forçada
A Ishimura Manseido, uma empresa de doces na província de Fukuoka, no sul do Japão, reivindica ter inventado o Dia Branco há 40 anos. Ela capitalizou a popularidade do Dia dos Namorados encorajando os homens a agradecer às mulheres com doces de marshmallow recheados com chocolate.
Desde então, a festa se popularizou e chegou a cruzar as fronteiras para outros países do Leste Asiático, como China e Coreia do Sul. E o que começou como algo entre amantes se estendeu a um amplo grupo de destinatários: colegas de trabalho, chefes, familiares, amigos. Rapidamente a brincadeira ficou cara.
“No final dos anos 1980, ganhei um lenço Hermès do amigo do meu pai, e essa pessoa estava dando lenço para todo mundo”, diz Sawako Hidaka, diretor-executivo da empresa sem fins lucrativos Asia Society, sediada em Tóquio, no Japão.
“Agora isso não acontece mais. Meu palpite é que se gaste algo entre 500 e 2 mil ienes (R$ 18 a R$ 70) na média por presente. Mas lembre-se que você não presenteia apenas uma pessoa, então isso se soma.”
Presentes dados, presentes recebidos
Feriados criados por marcas existem em todo o mundo. Nos EUA, há os chamados “feriados da Hallmark”, que inclui o “Dia Mais Doce”, um Dia dos Namorados menos popular em outubro.
E embora o Dia Branco exista com o fim de estimular as vendas no Japão, ele está surpreendentemente conectado aos valores da sociedade japonesa. À medida que o Dia Branco se aproxima, os pontos de venda anunciam seus produtos como okaeshi, que significa presente dado como agradecimento.
Demonstrar apreço e amor é um símbolo de afeto e respeito em todo o mundo, mas a prática assume particular importância no Japão, um país que valoriza muito a harmonia do grupo e o bom relacionamento social e profissional.
“A tradição japonesa de presentear indica que, se você receber um presente, você é obrigado a retribuir”, diz Setsu Shigematsu, professor associado de mídia e estudos culturais da Universidade da Califórnia em Riverside.
“Obviamente, os mal-entendidos que podem ocorrer por tais trocas são evidentes. As pessoas podem estar cansadas dos problemas que podem advir dessa troca de presentes, uma vez que ela borra a fronteira entre romance e obrigação”, continua.
Declínio na popularidade?
Segundo a Associação de Aniversário do Japão, uma organização que registra e estuda os eventos e feriados do país, os gastos do Dia Branco no ano passado caíram cerca de 10% em comparação com 2017.
Há uma razão simples para o declínio, diz a associação: os gastos do Dia dos Namorados no Japão também caíram — neste caso, 3%. Se há menos mulheres distribuindo chocolates, haverá menos homens ainda para agradecer um mês depois.
Apesar do abalo, o Dia dos Namorados gerou mais de um US$ 1 bilhão (R$ 3,9 bilhões) no Japão — uma cifra nada irrelevante.
“O evento de mais impacto nos negócios é o Natal, seguido pelo Dia dos Namorados; o Dia Branco é o terceiro mais importante”, diz Mayumi Nagase, gerente de produtos da Puratos, uma empresa de chocolate e confeitaria sediada em Tóquio. “Nós vendemos muito chocolate e outros ingredientes para as confeitarias prepararem bolos frescos”.
Já o chef Mou Soejima, que vive em Kamakura, no Japão, pondera não perceber aumento dos negócios no Dia Branco. Isso porque se trata de um feriado menos voltado para sair e jantar e mais sobre dar e receber o okaeshi.
Ele próprio questiona a relevância da data: “O Dia Branco é incompreensível. Onde você já viu marshmallows mais caros que chocolate?”.
Papéis de gênero e expectativas
Na mesma linha, há pessoas no Japão fartas da estranha dinâmica de poder posta em ação nessas datas festivas, especialmente no contexto do escritório. E, mais do que isso, incomodadas com a divisão de gênero promovida pelas festas.
“Claramente esses feriados atribuem papéis específicos de gênero e orientação sexual”, diz Tomomi Yamaguchi, professora de sociologia e antropologia da Universidade de Montana. “A heterossexualidade é obviamente a premissa da promoção desses feriados”.
Ela ressalta que entre os presenteados hoje estão parceiros do mesmo sexo, amigos e até a si próprio. Mas a tônica da celebração é, em sua origem, mulheres presenteando homens. Ela surgiu por volta de 1970, quando lojas de departamento começaram a encorajar as garotas a comprar chocolates para os meninos como forma de demonstrar seu interesse.
“Naquela época, não era comum que as mulheres declarassem seu amor aos homens, e o Dia dos Namorados era o dia em que elas podiam fazê-lo”, conta Mayumi Nagase.
O feriado foi criado, portanto, para dar às mulheres a chance de demonstrar seus sentimentos. “Em uma era machista e dominada por homens, fazia sentido”, completa.
Crise econômica
Um dos fatores contribuindo para o desgaste das festas não é apenas social. Shigematsu acredita que a queda da renda da população também tem acelerado esse declínio. Estimativas apontam que a renda média do trabalhador japonês é a menor em 30 anos.
“A tradição de as mulheres presentearem no Dia dos Namorados, seguida por homens retribuindo-as no Dia Branco, simplesmente não se mantém no mesmo patamar de vendas por conta das mudanças econômicas e sociais em curso”, defende.
Yamaguchi, enquanto isso, acha que o fascínio pelo Dia dos Namorados está diminuindo e sendo substituído por outras celebrações importadas, como o Halloween.
E Nagase, da Puratos, acrescenta que tanto o Dia dos Namorados quanto o Dia Branco estão ficando mais casuais e menos definidos pelo romance: “Os amantes do chocolate, não apenas mulheres, mas homens, gastam muito dinheiro para comprar chocolates premium para si próprios”.
Será que essas festas sobreviverão no Japão atual? Talvez elas possam ser reformuladas para as novas gerações. Em vez de ficarem presas a um ciclo caro e obrigatório de presentes, as festas se tornem um momento para cuidar de si próprio. “As pessoas já começaram a repensá-las”, diz Hidaka.